Vôo cego

Está a bordo do seu momento mais tenso. Nervos retesados, feito pensamentos alugados do dia que não foi dos melhores. Quantos dias insatisfatórios ainda terá nessa vida? Basta estar vivo para deixar levar-se pelo império do abandono. Hoje são mistérios que se acomodam nas suas veias, gelando sua alma de maneira a conservá-la em dia. Ele tem nome, mas não se lembra bem dele no tal momento. Talvez deseje perder a identidade.

Olha as mãos dela escorregarem pelos quadris, desenhando em falso colorido a curva de um corpo que concretiza os seus desejos mais bélicos. Suor na testa dele. Graça na dança dela. Não compreende como alguém tão terno caiu assim nas suas mãos. Uma mulher de gestos sutis, mas que não sofre de falta de identidade; que está envolvida apaixonadamente consigo mesma e com as descobertas oferecidas pela vida. Lembra um pouco Greta Garbo quando o encara, tentando seduzir o instante do qual homem nenhum gosta de perder a autoria: o da conquista. É a forma como domina a si mesma que a torna tão letal. Fecha as mãos e as aperta tanto que as unhas deixam marcas avermelhadas nas palmas. Ela sorri, mas sem perder o ritmo. Ele controla a dor e depois solta um suspiro de alívio – momentâneo.

Escolheu aquela música por fazer parte do passado dela. Dançá-la é como despertar emoções arredias. Mas, ele não sabe disso. Pensa que qualquer música é capaz de deixá-la desperta e liberta, sem as cruzes da vida sobre seus ombros. Cada um, a seu modo, mente sem deixar pistas.

Coloca a mão sobre o seio dela, uma carícia e logo vem a busca ao coração. É ao senti-lo bater descontrolado que constata ainda estar vivo. Passa muito tempo apenas olhando sua mão sobre a pele dela, como se qualquer um ao vê-los naquele momento possa compreender que tudo o que os liga também separa. Fácil é conhecer uma pessoa superficialmente. Difícil (e até mesmo perigoso) é fazer aquele jogo no qual eles se esbaldam. Conhecer dentro e fora; fazer do prazer do corpo a essência da alma; entregar-se totalmente e com tanta fúria, tornando fácil esquecer da existência do mundo. Tudo
parece mais cálido, étnico, ávido.

Foi essa rendição que ele amargou durante toda a noite. Será que ela suspeita do seu sofrimento? A lembrança de vê-la pela primeira vez tornou o transe menos cruel, mesmo sendo mais um artifício do destino para confirmar as suspeitas dele... nunca conseguirá viver sem a presença dela e a possibilidade de ausência o torna uma espécie de militante emotivo. Está disposto a chegar onde for, contanto que nada mude, que aquele sentimento profético não o deserde.

Ela quer encontrar as palavras certas, mesmo sabendo que elas nunca existiram e não seria no ardor do instante que as inventaria. Enquanto roça sua pele na pele dele, sente borbulharem dentro dela todos os medos e desfeitas. Ele a toca e ela sente feito corte profundo, a dor da dúvida neutralizando o prazer. Não tem o dom de saber as preferências dele de comida, bebida, livros ou discos; mas sabe de cor como deve abraçá-lo, beijá-lo, tê-lo preso nas entrelinhas do seu querer e entre as suas pernas. Sabe que pode passar fome, sede ou a total escassez de cultura, mas não há como sobreviver à inexistência dele; sem poder integrar a total ausência do mundo que há na sua presença.

Não é prudente pensar no amor como acessório gracioso. O amor faz da graça um objeto obsoleto, um auto-retrato cômico e brutal do perigo, e fortalece os destemperos do epílogo de qualquer história. Como aquela que do amar demais tirou o temer ferozmente não ter. Exageros arbitrários.

Ele, acarinha o rosto dela como que se apoderando da beleza perfeita. Ela, sorri porque conhece o modo exato de fazê-lo e que tanto gozo nele provoca. A totalidade é um confronto. Ele ama amá-la. Ela ama amá-lo. Ele odeia amá-la. Ela odeia amá-lo. O que fazer com os destratos do perfeito? Como bradar com a imensidão do que é febrilmente indecifrável? Ele, sente a fragrância do desespero se apoderar do seu corpo. Ela, sente o que ele sente. Ponto.

Enquanto envolve a mulher que ama também pensa que não tê-la conhecido teria sido melhor. Ele não sente culpa por pensar assim, tamanha é a dor que a possibilidade de um dia perdê-la causa. Ela pensa que se ele não existisse seria tudo diferente, ela não se atreveria a sentir algo tão denso, tão singular por outra pessoa. Ele diz que o perfume dela é inconfundível, enquanto gostaria de não mais senti-lo. Ela diz perder-se no som da voz dele, enquanto gostaria de nunca mais ouvi-la quando está dormindo, tentando alcançar outros sonhos.

Então ela volta à dança, gestos vibrantes. Ele torna a observá-la dominado pelo deleite. As coisas se ajeitam dentro deles; sombras adormecem. Eles são novamente apenas crias da intensidade do que sentem, ignoram o que os cerca. Um vôo cego comandado pelos requintes do amor brutal, da violência da possessão. Felicidade? Dizem uns que ela é tranqüila, agradável. Pensam eles que ela é pretensiosa e cheia das artimanhas. Ainda assim, doce felicidade essa que os açoita, sangra, aprisiona.

Carla Dias


 
 

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