PRESSÁGIO

    No dia 6 de agosto de 1945, nasceu Jesus. Enquanto em Hiroshima a bomba atômica encostava ao solo, fazendo as primeiras vítimas da fissão nuclear, Jesus apresentava a sua primeira manifestação extra-uterina, chorando instintivamente no afã de encontrar o oxigênio necessário para alimentar-lhe a vida na superfície de nosso planeta. Sua família, financeiramente
depauperada pela economia sufocante da guerra, pedia forças a Deus para dar o sustento ao rebento desejado. A loja de flores de seus pais, situada na periferia da cidade em que viviam, mal dava para as despesas com a alimentação. O mundo parecia estar desprezando os símbolos da paz e do amor, muito mais pelas atrocidades econômicas a que vinha se submetendo do que pelo desejo das pessoas. Os que estavam no hospital, naquele dia, diziam que o seu nascimento não fora igual ao das outras crianças, pois se percebia claramente que o menino tinha luz própria e que era capaz de mexer com o comportamento dos presentes, mesmo que naquela oportunidade o choro fosse a sua única forma de expressão.

    A guerra acabou. Começou a grande reconstrução dos povos. Alguns países tornaram-se comunistas, outros passaram a existir. A macroeconomia mundial voltava a funcionar, enquanto as pessoas comuns passavam a acreditar em dias melhores. Nos mercados, viam-se novamente o leite, a carne e os grãos fartos, motivos para que novas gerações saudáveis se formassem, paulatinamente, levando à auto-sustentabilidade de suas nações. Jesus estava nesse meio e disso não tinha como escapar. Porém, era uma pessoa realmente diferente; intuitiva e antecipativa. Com 5 anos de idade, evitou o que poderia ser a morte de seu pai, porque não quis largar dele no dia em que tinha  de ir  de trem ao  centro da cidade para a compra de ornamentos para a sua loja, o que não  faria  de qualquer maneira, pois o comboio ferroviário em que iria descarrilou e poucos foram os sobreviventes. No mês em que completava 9 anos, anteviu a morte do presidente Getúlio Vargas, repetindo a visão durante 10 dias seguidos, até que o fato se concretizou. Foi capaz de prever a revolução em Cuba, a morte de John F. Kennedy e o golpe militar que ocorreu no Brasil, em 1964. Não fazia disto um modo de vida, pois os fatos surgiam-lhe espontaneamente em qualquer lugar. Na verdade, seus pais, apesar dos progressos comerciais com a venda de flores nos anos de paz e de amor, até sugeriram que ele desenvolvesse mais ainda a sua capacidade de antevisão e que se tornasse um profissional, mas não era por aí que ele via a sua auto-realização. Muito pelo contrário, aproveitou humanamente os seus vinte e poucos anos, engajando-se em movimentos que procuravam antecipar o início da Era de Aquários. Fumou maconha, participou dos festivais da canção e contestou nos movimentos estudantis, mas nunca pôde escapar de suas potencialidades premonitórias, sendo, inclusive, capaz de afirmar, com uma razoável antecedência, que o homem conseguiria pisar na Lua antes do fim dos anos 60. Curtiu tremendamente a segunda fase dos Beatles e, em 1968, já chorava pela dissolução da banda inglesa. Procurava encarar a sua capacidade extra-sensorial serenamente, mas é óbvio que isso o aproximava de Deus e o fazia querer falar com o Pai mais do que os cidadãos não-religiosos comuns.

        No princípio da década de 70, seus pais encontravam-se numa posição econômica invejável . Os frutos da geração paz-e-amor fizeram com que o que era uma loja caquética na periferia se tornasse uma das maiores redes varejistas de flores do país. Jesus, apesar da impressão de errante irremediável, não o era de todo, tanto que, no início dos anos Geisel, já estava formado em Administração de Empresas, enxergando os ativos e os  passivos  com outros  olhos. A  possibilidade  de  saber  que  Elvis Presley  morreria  em  no  máximo 3 anos e que entre o fechamento do Congresso Nacional  e a explosão de uma bomba  no Riocentro haveria o início da  anistia  política  no  Brasil  já  não  era  mais aceita com tanta naturalidade. Queria ser uma pessoa normal, que  não causasse espanto às outras, que pudesse estar numa roda de amigos sem que lhe perguntassem o resultado da loteria da semana seguinte. Resolveu, então, aceitar o convite do pai, que não conseguia mais tocar sozinho o seu próspero negócio, precisando de uma pessoa de confiança absoluta para poder continuar multiplicando o vil metal nas mãos da família.

        Em fins da década de 70, havia chegado à vice-presidência das Organizações Pólen e, àquela altura, a diversificação de atividades é que era o forte da solidez das empresas que administrava. Tudo isto havia sido reconhecidamente impulsionado pela competência do filho pródigo, que, apesar do exercício que cada vez mais hipertrofiava o lobo pragmático de seu cérebro, não conseguia desvencilhar-se das premonições fantásticas que tinha, o que, na verdade, já não o abalava tanto, pois a ambição lhe passara a ser muito mais importante emocionalmente. Sabia que seu pai, doente, em breve não poderia mais estar do seu lado e, por isto, procurou chegar ao conhecimento pleno dos negócios pelos quais zelava. Tinha a certeza de que o "Personal Computer" seria o grande avanço tecnológico no início dos anos 80 e fez com que suas empresas ficassem na vanguarda. Por outro lado, o fato de uma doença sexualmente transmissível estar para vir a ser a maior preocupação da humanidade só o havia levado à certeza de que tinha de se precaver. Seu pai morreu, ainda na primeira metade da década de 80, mas isto não o levou a uma situação de resignação.

        Ao término de mais um decênio, Jesus podia se considerar um profissional bem-sucedido, porém  queria muito  mais. Abriu o capital das Organizações Pólen, incorporou empresas à beira da falência  por preços oportunistas, demitiu pessoas, abriu  filiais  fora do Brasil, enfim, era dono de um verdadeiro    império   que, mesmo   com   as   picaretagens   da  República de   Alagoas, crescia desenfreadamente. Num ímpeto de ambição descontrolada, passou a canalizar as  suas premonições em  prol de suas empresas. Para as visões que teve sobre a Guerra do Golfo, não tomou grandes providências, porque seria apenas uma demonstração de forças da única superpotência que emergiria nos anos 90. Limitou-se  a  acompanhar o fim das maracutaias alagoanas, porém, no dia-a-dia, aproveitava-se da sua capacidade para fazer as transações corretas antes que seus concorrentes as pudessem fazer. Quando completou 50 anos,  falava-se em neoliberalismo e globalização como se fossem as coisas mais certas do mundo. Sempre atento às potenciais fontes de capital, procurava aproveitar a onda tirando o máximo para si e suas empresas. Pouco se importava com os pobres que lhe pediam dinheiro quando parava de carro nos sinais de trânsito. Queria mais era aproveitar-se da dádiva inata que recebera, convertendo-a integralmente para o seu próprio benefício.

        A reeleição de Fernando Henrique Cardoso foi mais uma previsão acertada e isto o fortaleceu,  porque, nos meandros de sua mega prosperidade, não havia mais espaço para um ser apolítico, o que o levara a tecer alianças com os homens dos Poderes Executivo e Legislativo. Com a morte de Fidel Castro e o retorno das relações diplomáticas entre Estados Unidos e Cuba,  pôde também ampliar sua atividade empresarial para o que era o último refúgio comunista das Américas. A Era de Aquários finalmente se estabelecia , mas ninguém se preocupava mais com isto. O que se desejava era tirar o máximo do semelhante e Jesus estava plenamente sintonizado com esta idéia. Candidatou-se a cargos eletivos porque sabia que se elegeria.  Foi vereador e deputado federal, passando  a opinar  diretamente  nas  modificações  de leis que a nova realidade do mundo exigia. Previa e constatava,  indiferentemente, a chegada de missões a Marte e a queda de um  grande meteoro na Europa Nórdica, pois  era  de  seu conhecimento que  nada  disso afetaria as relações do mundo  pós-moderno. Completou  60 anos  reconhecido internacionalmente, tanto pelas  riquezas acumuladas como pela sua atuação política, cada vez mais obsessiva. Em 2006, candidatou-se à presidência da República do Brasil. Apesar das certezas com relação a mais uma conquista, pela primeira vez na vida questionou o caminho que escolhera. Será que era realmente aquilo que Deus esperava dele?  Por que Ele não lhe extinguira a capacidade de ver o futuro se isto somente vinha se traduzindo em vantagens
absolutamente pessoais?  Já não havia mais tempo para mudanças. Tornou-se presidente. Um presidente autocrático,  apto a  modificar  as relações  de seu país com o mundo. Pior: capaz de mudar as relações  entre outros países sem a interferência direta do seu, tudo devido à sua grande perspicácia político-comercial.

        O mundo capitalista do século XXI vinha se apresentando muito mais voraz e economicamente sensível do que o da época do macarthismo norte-americano. Não havia mais espaço para sonhos e esperanças humanos. No meio deste contexto, Jesus tomava decisões que julgava totalmente confiáveis e benéficas para si e para o seu país, onde estava a matriz de seu império. A última grande transação comercial envolvia países de vulto, como os Estados Unidos, a Alemanha e a França. Precisava compensar os erros do passado e os rios de dinheiro jogados fora pela inépcia de governos anteriores. O contrato foi assinado em meio a divergências entre os países de primeiro mundo envolvidos.

        Numa noite, foi dormir e sonhou o que parecia ser um filme com os melhores momentos da humanidade. Viu  o homem  de Chukutien  dominar o fogo, o Homo habilis   talhar as primeiras  pedras  e  Jericó  erguer  as  primeiras muralhas  do mundo. Viu o Egito inventar a navegação à vela, o  início  da metalurgia do  ferro  em Anatólia e Pitágoras estabelecer  o  seu célebre teorema, inaugurando a  Matemática  moderna. Num  sono cada  vez mais  agitado, passou  pelos romanos   ao  construírem  os seus  primeiros aquedutos e pelos chineses quando descobriram a tinta. Adentrou pela era dC e viu Constantino tornar Roma cristã, os chineses descobrirem a pólvora e a colonização luso-hispânica alastrar-se pelo mundo. Queria acordar, mas não conseguia, como se aquele não fosse um sonho espontâneo. Num ritmo cada vez mais alucinante, constatou a Revolução Francesa, a Revolução Industrial e os irmãos Lumière projetando, em Paris, sua primeira película cinematográfica. Subconscientemente enfastiado,  fazia uma força brutal para despertar, mas não tinha mais nenhum domínio sobre si próprio. O sonho avançava cronologicamente com a força devastadora de um tornado. Entrou pelo século XX e esbarrou no sangue da Primeira Guerra Mundial, ao tempo em que via Albert Einstein formular a teoria geral da relatividade. Varou a Segunda Grande   Guerra  e pôde ver o seu próprio nascimento. Assistiu a Guerra do Vietnã, a Guerra dos Sete Dias e a interminável Guerra Fria. Caoticamente, o sonho atravessou  as décadas de 80 e 90, entrou pelo século XXI e, subitamente, aterrissou sobre uma ogiva que singrava pela atmosfera terrestre. Não queria mais acordar e sim ver aonde é que iria dar aquilo. Deu no coração de Manhattan. Apavorado, finalmente acordou e saiu correndo no meio da noite rumo ao seu gabinete, mas não conseguiu chegar. Sofreu um infarto agudo do miocárdio.

        Não conseguira prever a data de sua própria morte, mas com a pouca vida que ainda lhe restava no corpo, Jesus começou a associar todos os fatos espetaculares que ocorreram durante a sua existência e, no último momento de lucidez, pediu perdão a Deus por tudo; pelo desequilíbrio de objetivos no qual sempre vivera e pelas conseqüências irreversíveis às quais o mundo chegara por causa disto. Não houve resposta. Parece que havia cumprido bem o seu papel.

Felipe Cerquize


 
 

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