O doutor Marcelo saiu do
quarto e fechou silenciosamente a porta atrás de si.
Carolina chamou a enfermeira
e pediu que abaixasse a cama e cerrasse as cortinas. Queria tentar dormir
um pouco.
Se tivesse papel e caneta,
suponhamos que escrevesse... E neste caso, o que escreveria?
Fechou os olhos e as palavras
surgiram em sua mente, um desejo imenso de gravá-las. Eram tantas
palavras a serem usadas, portadoras de sentimentos tortuosos e difíceis!
Os pensamentos eram velozes,
mais que qualquer mão. Escreveria sem críticas, sem censura,
sem correção, como se passasse um ungüento sobre uma
ferida. Simplesmente...
Como você me pediu que escrevesse, que não abortasse de mim os pensamentos, da mesma forma que tentei abortar minha vida... como afinal parece que vou continuar vivendo, mesmo tendo me atirado sob um caminhão, o que só resultou em escoriações superficiais e uma luxação na perna e mais outra na alma, mas não foi o fim de minha maldita cabeça... como você me surpreendeu , sabendo tanta coisa de mim, sem que lhe dissesse,... como você é quase um mágico... bem, vou fazer o que me pediu. Vou escrever, nem que seja para fazer algo com o tempo infindável que me espera.
O sono engoliu suas palavras e quando acordou sentiu uma verdadeira indigestão de idéias.
Você não tinha
como saber que me faria tão bem sugerindo que eu escrevesse, meu
maior sonho! Os poemas de amor, guardados não sei onde, foram meus
primeiros filhos, que nunca viram a luz do sol.Devem fazer parte agora
da poeira do mundo, depois de quase uma década abandonados... onde
foram parar?... talvez em casa de minha mãe, nos armários
da biblioteca...Sabe lá se ainda existem...
Do pó ao pó,
como a juventude que tive.
Os tijolos foram sendo empilhados
aos poucos, até construir o imenso castelo fantasmagórico
onde me enclausurei viciosamente e envelheci.
Quando deitada nesta cama
hospitalar, recebi sua visita médica, confesso que me surpreendi
em vários sentidos.Você puxou minhas costas, tentando recolocar
no lugar a coluna. Ouvi vários estralos e estalos, dores suspeitas,
inexatas, impressionistas, dores de minha alma confusa, centrada em pequenos
pedaços de osso, dores de Frihda Kahlo.
Dores da alma são muito fundas e demoram muito tempo só
para serem descritas. Não vá você pensar que se pode
curá-las através da colocação adequada de um
disco, de um estalido, que demonstra que nossa essência física
é mineral e óssea. Isso não é verdade!
Você deveria saber
disso, pois é um anjo sensível e um psicólogo nato.
Até soube aconselhar-me a escrever, muito melhor que fazer uma psicoterapia.
Além disso prefiro ser escritora, ainda que sem talento, do que
neurótica assumida!
Ao mesmo tempo tudo está
entupido, em mim, desde as cavidades do nariz e da fala, até a respiração.
Quanto mais os fatos!
Um chiado feio tem tomado
o lugar das palavras que não disse, da história que não
contei. Mal consigo respirar a noite.
É isso, então.
Ou escrevo ou morro embaixo de um caminhão, ou enclausurada e mineralizada.
Ou relato e delato, ou asfixio.
Carolina pediu papel para
escrever.Trouxeram-lhe depois de muito tempo um maço de rascunho,
do outro lado o traçado de um eletroencefalograma.
Era engraçado escrever,
sobre as impressões elétricas do cérebro de um estranho,
tanta coisa que lhe passava na mente.
Olhou o traçado,
sem nada entender.Seria algo normal,aquele zigue-zague azul? Pertenceria
a homem, mulher. Ou criança? Que segredos guardaria aquela mente?
Tenho impressão que
estou viva. Mas quando você massageou-me, de frente, de costas, de
lado e escutei-me ranger... tive dúvidas, tão longe de mim
e estranho aquilo parecia..É que a situação era igual
a de um filme que vi, o herói deitado na mesa de massagem.Ele achava
que estava com dor e um caridoso massagista o aliviava. No final do filme
percebi que aquela imagem fazia parte da agonia do herói, um sonho
aliviante, momentos antes de sua dolorosa morte em campo de batalha.Nada
mais era que um sonho in extremis, antes do apagar definitivo da vida,
enquanto a luz da consciência emitia um último e leve bruxulear,
sob a forma de cenas em movimento. De vida, enfim.
Não lembro o nome
do filme, nem do diretor, nada vence o tempo e meu cansaço. O esquecimento
é tudo que resta sobre esses verdadeiros gênios que conseguem
fazer filmes sobre o que nos vai acontecer um dia depois!
Se lembrar eu digo, não
é justo não lhes dar o crédito merecido.
É muito parecido
em certas ocasiões estar vivo ou morto, acordado ou sonhando. É
só uma questão de perspectiva.
Talvez meus pensamentos
sejam como um ronco asmático, um rangido de uma porta velha, de
um casarão abandonado há muitos anos. As palavras são
o vento escondido que passa pelas frestras. Nada mais.
É assim que vou relatar
minha história e os que a lerem, sem compromisso, mantenham similar
atitude de espírito.
— Como está? - perguntou
a enfermeira da noite.
Nenhuma resposta.
Carolina tinha morrido antes
de tomar os comprimidos da noite. Mas sem dor física, comentaria
o legista, no dia seguinte.
E sobre suas razões,
tantas vezes alegadas,ninguém ficou sabendo quais seriam.
Clélia Romano