Alguém em Algum Lugar
 
                             O Banco estava quase vazio, exceto por três pessoas que faziam uma mini fila em frente aos caixas e por um velhote que consultava o computador.

                             Satisfeita, agreguei-me àqueles que esperavam, segurando o cheque já preenchido. Ainda bem que a minha vez chegaria rápido, porque  meu marido me esperava no carro e, se aparecesse algum guarda, a multa seria inevitável.

                             Dediquei-me a observar as pessoas e a imaginar o que pensavam, quais seriam seus problemas, essas coisas com as quais a gente gasta o tempo quando está presa em um lugar público com outras que não conhece.

                             Logo chegou a minha vez e, após sacar o dinheiro, dirigi-me apressada para a rua, à procura do carro familiar. Tínhamos ainda que passar na loja do bolo, apanhar os doces e botar gasolina.

                             No primeiro momento não o avistei. No segundo também não.

                             Talvez estivesse mais para a esquerda. Fui até o meio da rua, arriscando-me a ser atropelada e a alguns palavrões enfurecidos e de lá olhei em todas as direções.

                             Nada.

                             Nem automóvel, nem marido.

                             Imaginei que o tal guarda aparecera e ele, na certa, fôra obrigado a dar a volta no quarteirão. Então, fiquei esperando, mas essa hipótese não se confirmou.

                             Procurei controlar o pânico, era absurdo ficar preocupada, mil coisas naturalíssimas podiam ter acontecido. Só que eu não conseguia me lembrar de nenhuma que fizesse meu marido me largar no meio da rua, sem dinheiro (a bolsa estava no carro) sem documentos e sem explicação.

                             O medo me deixara irracional. É claro que eu tinha dinheiro: estava saindo do Banco. Apalpei as notas dentro do bolso e fiquei um pouco mais calma.

                             O jeito era pegar um táxi pra casa. O bolo e os doces que esperassem.

                             Enquanto aguardava que algum motorista menos apressado atendesse a meus frenéticos sinais, observava os carros que passavam, na esperança de ver o de meu marido surgir entre eles.

                             Nada.

                             Finalmente um táxi parou e eu entrei. Sentia a boca seca como papel e foi com dificuldade que falei:

                             “Gustavo Sampaio... Leme.”

                             Ele me olhou espantado:

                             “Onde?”

                             “Leme!...” repeti, aumentando o volume da voz “LEME!...  GUSTAVO SAMPAIO.”

                             “Onde é que fica isso?”

                             “Como onde é que fica isso? O senhor não é daqui? LEME... final de Copacabana. É só seguir em frente.”

                             “Copacabana?”

                             O homem me olhava como se eu fosse marciana e comecei a temer que tivesse entrado justo no automóvel de algum louco. Mas, como não conseguira outro, resignei-me:

                             “Eu mostro onde é. Vai em frente que eu guio o senhor.”

                             Ele concordou. Seguimos cantando pneu. Descemos pela Barata Ribeiro, viramos na Atlântica e, finalmente, eu estava na Gustavo Sampaio. Em casa.

                             Paguei e saltei, enquanto o homem continuava me olhando como se a louca fosse eu.

                             Severino não estava na portaria. O porteiro era outro que me encarou desconfiado quando o cumprimentei. Perguntar por meu marido foi inútil, ele não o conhecia.

                             O apartamento estava escuro e, por mais que batesse, ninguém atendeu. As chaves tinham ficado na bolsa, dentro do carro.

                             Comecei a ficar, outra vez, preocupada. A passageira sensação de segurança que sentira ao chegar em casa ia se dissipando.

                             Tentando me acalmar, voltei à portaria e perguntei pelo Severino, mas o idiota que o substituía parecia não conhecer ninguém. Pedi, então, que me arrumasse um chaveiro para arrombar o apartamento, mas ele se negou a deixar a portaria sem ordem do síndico.

                             Tudo bem, eu ia falar com o Comandante Coimbra.

                             No apartamento dele, uma simpática velhinha me informou que lá não morava ninguém com esse nome. Meu coração começou a bater feito louco e ela, sentindo minha palidez, me convidou para entrar.

                             “Está se sentindo mal, minha filha?... Deve ser a pressão... Quer um café?”

                             Eu aceitei porque precisava mesmo tomar alguma coisa e minhas pernas estavam ficando dormentes.

                             Sentei no sofá antiquado, coberto com uma rendinha no encosto e olhei para seu rosto suave e cheio de rugas, completamente desconhecido.

                             “Quando é que a senhora se mudou para cá?”

                             “Mudar?”... ela me olhou surpresa “Eu morei aqui a minha vida quase inteira, desde que me casei...”

                             Ouvindo mais esse disparate perdi completamente o controle e comecei a chorar. Entre os soluços, percebia o ar chocado e desaprovador dela sobre a fumaça do bule de café.

                              Minha presença se tornara desagradável e aquela velha me olhando com seus olhos de peixe começava a me dar nos nervos. Saí sem agradecer e fiquei parada na portaria sem ter a menor idéia do que deveria fazer.

                             Meu marido não aparecia. Perguntar por minha filha àquele desconhecido quase imbecil  seria inútil.

                             Mesmo assim, me dirigi a ele, precisava conversar com alguém:

                             “Onde está o Severino?”

                             “Severino? Já disse que aqui não tem Severino não senhora.”

                             “Como não tem Severino?!... O porteiro, meu filho!... o porteiro-chefe... Vai me dizer que você não sabe que ele se chama Severino?...”

                             “O porteiro-chefe sou eu e me chamo Antonio.”

                             “Não é possível!... desde quando?...”

                             “Ah... tem uns dois anos mais ou menos...”

                              Minha cabeça começou a girar. Dois anos!... O edifício era o mesmo. Ou não era?... Já não tinha certeza de nada. Olhava as paredes de mármore, os lustres, as portas que minha mãe colocara num dos quatro anos em que fôra síndica... até o pequeno rasgão no tapete era meu conhecido.

                             Mas o mundo parecia ter virado de cabeça para baixo.

                             “A senhora mora aqui há pouco tempo?”

                             “Claro que não... eu moro aqui há quinze anos. Sou a mãe da Débora. Você conhece a Débora pelo menos?...”

                             Ele fez que não com a cabeça. E me olhava como se eu fosse verde e estivessem crescendo antenas em mim.

                             “A minha mãe Dona Sônia?”

                             Novo movimento de negativa.

                             Já desesperada, perguntei:

                             “Quem mora no 702?”

                             “O General Túlio e a mulher dele, D. Cordélia.”

                             Era o meu apartamento. Ou não era.

                             Um terror profundo me invadiu. Quem sou eu, realmente? Tudo que me fazia existir como pessoa estava fora de mim. São as referências exteriores que situam você no mundo. Sem aqueles que me conheciam eu era apenas uma mulher na portaria.

                             O que me dava sentido era o conhecimento do Outro.

                             Eu sabia minha história, mas não tinha quem a confirmasse. Se não morava lá, naquele edifício, então ninguém ia chegar, nem meu marido nem minha filha, se é que eles existiam realmente fora de mim.

                             E ia ficar ali, parada, eternamente, naquele saguão vazio à espera daquele que ia me restituir a ilusão da identidade perdida.

                              Alguém, em algum lugar, ia voltar pra mim.

Maria Helena Banmdeira


 
 

« Voltar