Rosário de Sonhos Azuis
 
A mãe de todos era amorosa, antes de tudo, amorosa. Em seu colo repousava um convite acolhedor, terno, um doce e amistoso: vêm, vêm! O Pai de todos sorria gentilmente e dizia, de quando em quando, firme e entusiasticamente, cheio de fé: vai, luta! E no calor da mãe se alimentavam. E no calor do pai ganhavam asas, podiam ir em busca do que lhes faltava: a ânsia de sua essência! Foi assim que deram à luz aos primeiros sonhos.

 

O menino menor, o meu filhinho – como dizia a mãe - o mais raquítico, queria ser jogador de futebol. Não foi, mas nunca duvidou que pudesse. Não havia obstáculo que os sonhos do menino não pudessem galgar, e as pernas finas do filhinho-palito bailavam com a bola, como um dançarino espanhol driblando touros. E os touros passavam reto com suas montanhas de músculos, resfolegando (e o menino bailando!), pesados, agitados  (e o menino “olé!”),  indo desabar direto na lama. Claro, a culpa era sempre do gramado escorregadio. Escorregadio esse gramado, hein? – gritava o pai do menino-palito, rindo, rindo feliz. O pai do menino mirrado que carregava um sonho atado ao pé. O sonho em que acreditavam.

 

Não, nem todos os sonhos são possíveis! – resmungava a avó de todos, frustrada. A neta tinha lá seus tenros quinze anos e acabou concordando com a velhinha azeda. Fora o professor de artes: o amado! A garota desenhava, todo o seu corpo desenhava, tracejava com a alma, mas o mestre não percebia o cisne oculto, o que graciosamente nadava na superfície do papel; não percebia as belas carpas logo abaixo da lâmina branca do papel, prontas para emergirem, coloridas e únicas. Carimbou um “fraco” e “insuficiente” num gesto brusco e os pescoços dos cisnes se partiram e as carpas se afogaram – nos sonhos elas se afogam! Os ventres brancos expostos, inflados e podres... A neta poderia ter continuado a caminhada, mas deixou escapar os sonhos como se soltasse balões. Eles partiram mortos para o céu. A mãe lhe deu o colo e o pai lhe disse “Vai!”, mas a moça, em seu coração, já havia feito um pacto fatal com a avó. Cisnes partidos e carpas afogadas...

 

A irmã de todos tinha duas bocas. Vai, vai! – dizia com uma, sorrindo, impregnada da meiguice emprestada da mãe e do pai. Essa era a boca mamãe-papai, mas havia a outra boca, a que ficava ao lado. As duas bocas idênticas, paralelas, alinhadas no rosto bizarro (o verdadeiro). Seriam iguais, exceto pelo que diziam. Droga, porque você tem que conseguir o que quer? Seria melhor se você não brilhasse tanto. É, seria bem melhor se você ficasse triste e quieta! Tenho vontade de estourar os seus sonhos!  Sim, a boca-inveja não se continha, maledicente. Mas as duas estavam lá, plantadas no mesmo rosto (lábios de rosa) e as duas eram sinceras. Às vezes uma anulava a outra. A boca mamãe-papai (a que tinha filhos) calava a rival. As vezes a invejosa sufocava a meiga. E a irmã de todos tinha que orquestrar suas falas.

 

O irmão de todos tinha cavalos siameses. Cavalos geminados, nascidos grudados pelas costelas. Andavam numa parelha só, invisível, fundida nos ossos. Idênticos! Um se chamava Ágape,  era manso e cordial, oferecia o lombo para passeios e para cargas. O outro não tinha nome (nunca deixou que colocassem um nome nele), era selvagem e mordedor. Feroz, recebia à dentadas quem ousasse se aproximar. Pois Sem Nome e Ágape só não rasgavam seus corpos porque carne e sangue lhes atavam (os delicados fios nervosos estirados). Odiavam-se! Mas o milagre acontecia: o irmão de todos aparecia e os brutos se acalmavam.

O problema era quando o irmão de todos deixava os cavalos soltos e esquecia de visitá-los. Então viravam monstros, pisoteavam tudo. As duas cabeças eqüinas, ardentes; as oito patas martelando sem dó; as narinas afoitas sibilando... As naturezas diferentes encerradas num mesmo corpo. E o irmão soltava os cavalos... e eles vinham em disparada, vinham correndo pisotear os sonhos. Foi sem querer!

 

O filho-do-meio não ouvia seriamente as bocas da irmã de todos (cedo aprendera a não confiar de todo nas bocas) e nem permitia que os cascos dos cavalos do irmão de todos esmagassem seus anseios de alma (frágeis como contas oníricas). Queria muito ser engenheiro, os que fazem cálculos de vida e morte: os lares que não podem desabar; os escritórios que não podem falir; as pontes que não podem cair! Não conseguiu. Quando finalmente ingressou na faculdade já era pai e arrimo de família. Já dizia para a prole, firme e entusiasticamente, cheio de fé: Vai, luta! E os pequenos ensaiavam os primeiros passos na terra fecunda do ir mais além. O filho-do-meio, que já era pai, desistiu de ser engenheiro, mas não se amargurou. Tinha lutado! Tinha tentado até onde pudera agüentar, tinha dado tudo de si, mas quando viu que os pequenos clamavam seu sorriso e que a esposa parecia uma estranha, percebeu que o cálculo de vida e morte estava sendo feito dentro dele e que a casa que perigava desabar era a sua. Lá no fundo, lamentava um pouquinho sua não conquista, mas  olhando as crianças e a esposa, sabia que eles eram seu sonho maior. Fez sua escolha.

 

A filha-mais-velha conseguiu dar o exemplo. Imbuída desde tenra idade a ser um modelo de existência para os filhotes-mais-novos, os pequenininhos, só lhe restara assumir a missão como se tivesse nascido com o dom nas tripas.  Apesar do fardo pesado, soubera aproveitar-se do que de bom ele lhe trouxera (atenção! Responsabilidade! Organização! disciplina! Senhor!) e escolhera realizar-se como professora. Para quem tivera que prestar conta por seus atos muito precocemente – Fulaninha, não bate no pipoquinha, ele é pequenininho; não joga o brinquedo no chão, você já é uma mocinha! Não, querida, não corre, você vai se sujar!  – a filha-mais-velha achava natural ensinar e ser professora (as fraldas caindo, “a porquinha”). Nada mais do que um dom exercido (devolvendo a chupeta que roubara do menorzinho, “a ladroazinha”). Dom...  Bem, mas não importava mais, era feliz em sua não-escolha. Jovem, alfabetizava aos pequenos como quem tem anos de experiência: e tinha! Via as crianças crescerem e isso ela amava.

 

O primo de todos estava rico. Era um empresário muito bem sucedido. Um verdadeiro gerente de negócios, um líder empreendedor, de visão ampla, prática e eficiente. Era impossível não admira-lo, tal sua desenvoltura e motivação. Seus dedos, curtos e grossos, mas não demasiadamente curtos, se moviam cheios de firmeza e convicção; iam desenhando projetos enquanto falava, clarificando situações, traçando rumos, criando perspectivas, tomando os expectadores de um fascínio energético, quase aliciando um apoio incondicional a suas idéias. Um líder! A família toda o citava em seu rol de tímidas glórias. Ah, o primo! E o bonito mesmo era que o primo tinha um sorriso aberto e franco, os olhos brilhantes. Era humilde, recebia bem a todos e comparecia aos festivos almoços com alegria e presentes. Alguém aí gosta  de um vinho branco gelado? – o sorriso amplo estampado no rosto.

 

A tia de todos não casara, mas tinha seus maridos. Ou seria divorciada, porém tinha seus namorados? Bem, a tia estudara e era arquiteta, militante política e conhecedora de todos os assuntos da atualidade. Beirando a casa dos cinqüenta anos, andava mais bonita e jovem do que muita menina nova. A tia comparecia às festas feliz e cheia de charme. Alguns fofocavam que lhe faltava maturidade e decência, porque até trocar de namorado com a sobrinha andou trocando, mas a tia já não escutava preceitos alheios e fazia o que bem lhe aprazia. Queria casar de novo, mas cada um nas suas casas!

 

Havia o tio-de-todos-beberrão. Não, não era alcoólatra. Era só “fraco” para a bebida. “Bati a cabeça num teto baixo”. “Claro, tio, claro!” Os sonhos do tio-álcool escoando pela garganta, conservados como fetos no formol. Quando desabava no chão, semivivo, ficava um porque pairando no ar. Vício, doença, mas porque tanta destruição?

 

Havia um outro tio que também gostava do álcool. Decididamente não era alcoólatra (morava no limbo), só queria “se divertir”, e o vinho, o carteado, o fumo e o bailão eram as únicas formas que conhecia e reconhecia como diversão. Deus, o tio não tinha sonhos. O palavreado limitado, a mente curta como um livreto barato, o trabalho monótono e repetitvo, a falta... não sentia falta! Era tão limitado, tudo o que desejava (seu anseio de alma) era vinho, cartas, baile e fumo! Não era coisa de momento, o tio passou a vida assim, com seus sonhos de botequim, que não iam além do bar da esquina.

 

E... havia ele.

 

O sonhador de todos. Mãe, Pai, filha, primo, avó? Observador familiar e julgador. Não deveria emitir juízo de valor, mas quem escapa dele? Andava atrás de seu sonho, agitado, querendo realizá-lo de todo. O prazer e a agonia da busca! (adrenalina nas veias) Claro, sempre havia o risco de ser violentamente frustrado nos seus intentos, de ser magoado; sempre havia o risco de ser feliz! O medo do sucesso castigando tanto quanto o medo do fracasso: uma chibatada de responsabilidade! Pague seus impostos, rapaz! Pague suas contas moça!  Vai, luta! – em nome da mãe e em nome do pai a vida cobra seu preço! Amém! É melhor poder dizer “Tentei, arrisquei, dei-me a chance! E não uma única vez, mas muitas e consecutivas vezes!” Sim, era isso. O sonho dele não estava enlatado, posto na conserva e nem cerceado e imposto pelos outros. Pelo menos ele pensava que não. Sim, um escritor (sonho e fantasia). Um narrador criativo. Há que se juntar os fragmentos e compor um todo e fazer um cordel de fatos e sentimentos firmemente entrelaçados ou pelo menos um colar trespassado (de contas ou de contos?) de acontecimentos que façam sentido. Há que se compor com arte, beleza e sedução. Arriscou-se! O cordel de sonhos oscilando. Carrossel girando. Tinha esperança. Tinha fé.

 

Acordou com o rosário azul entre as mãos.
 


Marta Rolim


 
 

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