O Forasteiro

      A festa era dessas comportadas. O forasteiro chegou logo depois de iniciado o coquetel. Descobriram-se no primeiro olhar, os olhos revelam a alma, e daí, talvez, aquela sincronia entre ambos; daí, talvez, a razão de sua surpresa ao se redescobrir ali, diante dele, entabulando uma conversa agradável, certamente muito se devia à alegria contagiante dela. Isso, no entanto, só realçava a simpatia imediata e recíproca, uma simpatia que tinha um ar de transcendência, o que conferia aquele diálogo um tom mágico, algo inebriante e ao mesmo tempo fantástico. Falaram, e em suas vozes, suas vivências, experiências distintas de duas pessoas de mundos distantes, mas que incrivelmente se aproximavam em suas diferenças, à proporção que o brilho e encanto de ambos era destilado; ele, em sua voz de forasteiro vindo das terras áridas do norte, se revelava um industrial, narrava com habilidade as venturas e desventuras de se dirigir uma empresa em um país de terceiro mundo; ela, em sua voz leve e envolvente, contava de suas experiências profissionais que envolvia o proletariado. Passaram para a política, falaram dos filhos, dos sucessos e fracassos. Depois falaram de arte, descobrindo ali uma paixão comum, paixão que ambos cultivavam; ele a literatura, ela as artes-plásticas. Logo surgiram relatos de viagens libertárias pelo exterior, das trapalhadas em que se meteram. Riram muito, felizes. Depois discutiram sobre filosofia, revelando sempre elegância e domínio do tema. De vez em quando, alguma amiga, segredava ao seu ouvido: "Vocês formam um lindo par..." Ela mirou-se na imagem refletida numa porta envidraçada. Estava com um vestido de gaze com fundo preto e flores em tons de azul royal e pastéis... O vestido deixava entrever seu corpo, as longas pernas, bem torneadas e os pés sobre um salto 9, que dava ao seu andar uma sinuosidade agradável. Gostou da imagem ali refletida, apesar de não ser tão jovem. Ela se surpreendia com a preferência recebida do forasteiro, bonito, cabelos grisalhos, olhos penetrantes, sob óculos de aros grossos e de uma elegância apurada...Afinal, ali estavam mulheres jovens e belas, disponíveis, à procura de uma bela companhia masculina.
       Porém, outros grupos a requisitavam e, de vez em quando ela o flagrava, observando-a, com uma taça de champanha nas mãos ou então, descobria-o, atrás dela, como nas mesas de roleta...
      Já ia alta a noite, quando ela decidiu que deveria deixar a festa e dirigiu-se à escada do jardim, quando ouviu que alguém a chamava. Ela voltou-se. Ele veio ao seu encontro, de braços abertos, e sorrindo disse: "Fugindo, sorrateira, sem se despedir? À francesa?" Ela desculpou-se, enquanto ele a enlaçou fortemente com o olhar, as mãos ternas dele a agasalharem as suas. Ao senti-la quente, macia, o Forasteiro pareceu vacilar, seu olhar não ocultava o brilho vivo, radiante; nesse lapso insignificante de tempo, o tempo em que os seus olhares falaram por suas bocas, suas mãos se encontraram, como que escrevendo a quatro mãos uma história comum daquele momento em diante, da insignificância da brevidade do tempo, ela se encontrou no fundo daquele olhar radiante; naquele olhar, ela descobriu uma infinitude de significados, encontrou na verdade todos o que procurara, que perdera em algum momento. O tempo em que isso se processou foi algo breve, mas infinito entre aqueles dois olhares; no olhar do Forasteiro, ela se encontrou nos braços dele, os braços vigorosos em sua cintura, seu rosto macio encontrou o do Forasteiro, deliciando-se quando ele depositou um leve e carinhoso beijo nos seus lábios...
      Na infinitude da brevidade do tempo, ela redescobriu que ainda tinha a sensibilidade de um violino, pois a cada toque, vibrava até as profundezas do seu ser. Ele reconhecera nela, aquela sensualidade latente, genuína, misteriosa, contida, desconhecida das mulheres mais jovens, disponíveis até demais...Então ele a olhou nos olhos, com a ternura pela qual sua alma ansiava, e disse...mas ela não compreendeu, as palavras de amor não são compreendidas, só sentidas. No brilho do olhar sentido, ela encontrou um espelho grande, já em casa, em seu quarto. Ali, ela foi tirando peça por peça do seu vestuário. Sorriu maliciosa ao deslizar as próprias mãos pelo corpo maduro, mas insinuante, como se estivesse em um ritual de strip-tease. Nua, diante do espelho, sentiu-se em êxtase, como se acabasse de antecipar a redescoberta do Jardim das Delícias, em comemorações voluptuosas...O espelho, a mulher nua, as lembranças, o desejo, tudo se confunde, só há uma mulher de meia-idade diante de um computador, uma mulher que esquecera por algumas desrazões que ainda estava viva, e que enquanto há vida, há uma possibilidade para o amor, diante de uma máquina fria, suas idéias se misturam aos desejos e se confundem em uma nova realidade, ganham vida própria em uma outra dimensão, a dimensão simbólica, onde ela encontra um homem ideal, em uma festa que era a síntese subvertida de todas aquelas repetidas festas "comportadas" que ela habitualmente sempre ia, como uma respeitável e também intocável Dama, desde algum tempo, viúva; festas previsíveis, com diálogos marcados, saturados e ela, intimamente, sempre a cada "festa comportada", alimentava aquela incômoda sensação, seu espírito indômito, de mulher criativa e apaixonada pela vida, não tardou a descobrir a desrazão daquela incômoda sensação, quando ela era só tão somente obrigada a cumprir aquele papel monótono, que nada tinha a ver com ela, ainda viva, criativa, com um coração latente... foi ali, diante daquela máquina fria, que nada tinha de encantador ou sensual, que seu erotismo recuperado revivia; aqueles símbolos permitiam que ela lesse aquele amontoado de imagens e experiências que ela carregava, ela lia uma menina imaginativa que desenhava retratos, lia uma jovem driblando a aridez do mundo, uma mulher honesta e fiel, todas eram ao mesmo tempo ela, e ao mesmo tempo já não eram mais, pois ali, diante da tela, através daqueles símbolos, há uma nova mulher que também é ela, talvez não tão bela como as outras que fora, mas talvez, até, todas aquelas outras juntas não chegassem aos pés dessa; criativa, sedutora, culta... uma escala da predicados que se perdem, mas que aqueles símbolos não deixam ocultos. Na dimensão mágica ela descobre o vinho na boca do seu amante com sotaque do norte, descobre que ainda há desejo por trás de festas comportadas, em que ela inutilmente sonhara com tais desfechos, com tais personagens nada previsíveis... A tela, repleta de letras, narra a aventura de uma mulher que também é ela, uma mulher que como o vinho, melhora com o tempo; diante da tela cheia de símbolos, ela lê e desnuda uma figura mítica, assim como Galatéia, ela emerge da imaginação de um Pigmalião que a esculpe em palavras, para que uma Afrodite a corporifique em "uma festa nada comportada", mas mágica, como contos que falam de mulheres maduras e amantes cultos, como a fantasia que as palavras carregam e muitas vezes nos permitem ler a vida e a nós mesmos de uma forma mais intensa, menos comum e previsível.
      A Galatéia que emerge de palavras dedilhadas na tela de um computador, ganha vida própria, e se corporifica por um encanto místico, que só aos deuses é permitido compreender, mas o calor dos seu lábios transcende esse mar de palavras, e creio que também através delas, um pouco dessa aventura se materialize, assim como os lábios de Pigmalião descobriram vida e calor em sua escultura transformada pela deusa Afrodite em mulher, os símbolos de um conto revelam que há mais, muito mais em festas comportadas e mulheres maduras...Que forasteiro é tudo aquilo que não é compreendido, que por isso é também misterioso e até sedutor, mas forasteiro somos, em verdade, nós mesmos, quando símbolos e contos revelam nossas fantasias, rompendo um pouco a fronteira entre o comum, o previsível e o fascínio de pessoas, coisas e desejos que nos são incomuns e por isso cheios de mistérios; forasteiro é o olhar do outro que nos reflete, e nos devolve um sentimento cheio de curiosidade e encanto, sobre ele e sobre nós mesmos, em uma descoberta sem limites, em um mundo sem fronteiras. Onde até o título desse conto naufraga, e começa a boiar em busca de novos sentidos, que novos símbolos venham a revelar, onde homens e mulheres se encontrem para contarem uns aos outros de seus mistérios.

Essa pequena aventura poética é dedicada a Teresa Canini, a mulher-vinho que traduz a vida em formas e cores inebriantes.


Rodrigo Caldas


 
 

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