Cena Amorosa com Fim

O apartamento escuro da tia tomou ares de hotelzinho barato da rua Voluntários. Ah, como gostava dela, namorada tão doce, tão meiga, empurrando  seu peito sem firmeza, dizendo sempre, num sussurro, “não, a tia já vai  voltar” e entreabrindo a boca carnuda, afastando as coxas devagarinho, correspondendo, ávida, aos beijos molhados. Agora ele precisava ir, a turma da banda o esperava para ensaiar: show no Bar do Zeca, logo mais à noite. O  rapaz levantou-se da cama, vestiu a calça num pulo e procurou a camisa na  penumbra. Estava feliz.

Ela, ainda deitada, puxou as cobertas até o pescoço e quase chorou. Ele  tinha vindo só pra comê-la. Nem ia esperar a cama esfriar, nem ia perguntar  como ela estava, nem mesmo faria aquela pergunta idiota “foi bom pra você?”  O abobado saberia a resposta se soubesse das suas fantasias. Sentiu-se uma putana, uma tola que não sabia dizer não.

Foi ali que decidiu: o namoro acabara! Nunca mais o veria. Ele que fosse tocar corneta nos quintos dos infernos. E, a duras penas, com a ajuda inestimável das amigas, manteve a promessa. Afastou o amasio que não tinha apego. Que Dalai Lama a perdoasse, mas apego era fundamental. Um casal não podia viver sem se importar um com o outro, sem sentir a falta, a ausência, e uma pitadinha de ciúmes. Se não, daí a pouco ficamos iguais aos bichos, só se encontrando no cio e assim não, assim não dá! – dizia aos quatro cantos – num misto de desejo, convicção e culpa.

Apesar das queixas e da promessa de terminar o namoro, ela amara muito o irreverente moço e sentia imensa saudade dele.

Ele, por sua vez, ficara surpreso e abalado com a atitude dela. Estava certo que não era novidade ela reclamar, pedir mais tempo e atenção, mas daí a mandá-lo embora para sempre, era radicalismo demais. O que ela estava querendo, afinal de contas? Não... que ele casasse? Era muito novo pra isso! E depois, sendo artista, precisava trabalhar pela carreira, viajar muito, ser livre e independente. Acabou resignando-se com o fim do namoro, e após algumas tentativas de conversa mal sucedida, partiu para não voltar. Sonhava com palcos maiores e aplausos da multidão. Sonhava com os beijos das fãs.

A moçoila, vendo que seu amor desistira, até com certa facilidade, tratou de enxugar as lágrimas e foi estudar para o vestibular, que também não ia ficar parada no tempo, só chorando as mágoas.
 

Seis anos depois o telefone toca:

-—      Alô! – atende uma moça de voz macia
—       Oi, quem fala? — responde uma voz masculina
-—      É a Ana.
-—      Oi Ana, aqui é o Guto.
—       Guto?
—       O Augusto...
—       Guuuto! Não acredito! Guto... é você mesmo?

Ele confirma e pergunta como ela está, se pode fazer uma visitinha, está ali perto, na verdade, em frente ao prédio, viu o endereço no guia...
 

Em poucos minutos estão frente à frente. A porta do apartamento se abre. Surge uma mulher jovem, elegante, sorriso bonito. Ainda com a mesma boca carnuda. Os dentes perfeitos, contrastando com a tez cereja dos lábios. Guto não tira os olhos da moça. Ana, por sua vez, olha para um charmoso homem moreno, asseado, roupas informais, parado no batente. As pernas fraquejam quase instantaneamente. Deus do Céu, haveria de dizer não para o infeliz! Não, não, não, não...

O convidou a entrar, cedendo gentilmente passagem. Acomodam-se na sala, um sem tirar os olhos do outro. A sala parecendo pequena e sacudida por tremores; o chão bailando no ar. Ela agita as mãos, um tanto ansiosa, adrenalina circulando a mil. Ele transpira, tesão e tensão.

—       Desculpe chegar assim, de surpresa, mas é que estava passando por aqui e olhei no guia, no orelhão... e procurava na letra...
—       Ah, imagina, tudo bem, mas... puxa, você aqui! Nunca que eu ia pensar!

Ambos riram, um pouco sem jeito.

-—      Estás casada? – ele arriscou perguntar
—       Sim. Quer dizer, tô enrolada.

Enrolada? Raios, de onde tirara essa maldita palavra? Estava enrolada? Que absurdo! Estava casada! Muito bem casada!

—       Hum... eu casei, fazem dois anos. – Guto respondeu
—       Ah, eu fazem quatro anos, fazem quatro anos que estou com uma pessoa.

Mercadoria! “estava com uma pessoa”? O que era isso, o que estava fazendo? Nem o nome do marido pronunciava?

—       E... conseguiste entrar na faculdade?
—       Sim, eu me formei em arquitetura. Sou sócia de uma firma. Faço projetos e tal... E você, ainda é músico?
—       Não, desisti. Não valia mais a pena. Sabe como é, o mercado está muito disputado... Eu trabalho numa firma, no escritório.

Houve uma pausa. O desejo diminuindo.

—       O meu marido se chama Augusto – disse ela, rompendo o silêncio
—       Sério? – Guto explodiu numa gostosa risada
—       É, ele se chama Augusto também.
-—      Que coincidência! – exclamou
—       Muita, né?
—       E o que é que ele faz?
—       É engenheiro.
—       Muito bem! – o sorriso de Guto iluminando seu rosto

Passaram-se mais alguns minutos e se despediram. Ele tinha um compromisso e não podia se atrasar. Levantaram-se e as mãos se cumprimentaram, educadas, olhos nos olhos, bocas entreabertas. Sede e aflição. Sede. Quando ela fechou a porta ainda tremia. Graças a Deus! Fizera bem em terminar com ele!

Ele desceu as escadas correndo, coração aos saltos. Ganhou a rua. Estava feliz. Continuava linda ela, linda! Atravessou a rua e sumiu na multidão. Ana cuidava da janela.

Marta Rolim


 
 

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