O monólogo de uma voz solitária
 

Pigmalião por ele mesmo

Vejo agora o sol que se põe, o crepúsculo que tinge a minha retina e seduz a minha alma angustiada; essa mesma alma que carrego tão cheia de vivências e coisas como sóis que se põem. Ofuscado pelo brilho dos astros, de deuses geniosos ou pelas trevas de noites e luas enigmáticas nasce a minha identidade, eu Pigmalião, uma voz condenada a um eterno solilóquio, o escultor de formas que ganham vidas e corações. Minha identidade? De todo eu não sei, não sei de mim, como não sei dos mistérios da vida, sou estranho a mim mesmo, eu vivo na penumbra dos meus sonhos, ofuscado pelo brilho dos meus delírios, na penumbra do meus sonhos me sinto grande como Fídias, o grande escultor, mas em verdade o fato é brutal, teima em me desdenhar, em revelar tudo o que temo em mim, quando me deparo com os limites que a minha mediocridade me impõe. De fato, ser como Fídias não é bem como desejo ser, não quero ser realmente como os deuses das artes ou como qualquer outro ser divino e sobrenatural, me encontro mesmo é seduzido por esse mundo bem humano de penumbras, ignorâncias, mediocridades e delírios. Minha identidade tão instável e débil, o que justifica minha existência efêmera, vive vagando entre essas sombras que são a minha única e possível realidade, realidade de penumbras e delírios, estes, os delírios, movimentam a minha vida através de impulsos ora violentos, ora melancólicos...me induzem a criar objetos e formas que dialogam comigo, é quando, às vezes, me sinto compreendido, mas é ao tocar a superfície gélida das esculturas que sinto ser tudo aquilo mais um delírio, e que tão somente falei com o nada, um diálogo imaginário que corpos e formas por vezes, caprichosamente, fazem parecer real. É nesses diálogos imaginários, em que há uma única voz, a minha, que se perde rumo ao nada, que me descubro em toda a minha natureza humana, que me descubro irremediavelmente obscuro e incompleto, as formas e corpos que simulam diálogos são uma projeção do meu universo interior em eterno delírio, mergulhado na mais obscura solidão, centrado no universo egocêntrico das minhas percepções. É quando, por vezes, vezes que não gosto de lembrar, o frio desolador das estátuas rouba o calor dos meus delírios que ensaiam diálogos, e me vejo cercado pelo nada, em um cenário polar, preso ao meu triste e mórbido monólogo. Na minha realidade gélida de homens feitos de pedra e cenários desoladores, eu me encontro cada vez mais só, monologando com pedras e recebendo como resposta o frio enrijecedor, cercado pelo vazio que tal cenário me impõe, me sinto impotente diante de tal mundo, mundo no qual vago atônito, com uma eterna e insolúvel dúvida impressa no rosto, me sinto em vários momentos suspenso e atemporal como as estátuas que crio, me sinto assim como um ser feito também de pedra, e muitas vezes respondo aos outros seres de pedra com o mesmo frio glacial com que me respondem em meus monólogos desoladores; é assim que me sinto integrado em um mundo de seres suspensos e eternos, imemorialmente perdido em um mundo sem lembranças e frio, frio como as estátuas sem coração e que ornamentam cidades, tão imortal e suspenso no tempo que chego até a virar latrina de pombos jocosos, e no entanto vejo isso com a mais brutal naturalidade. Em outros momentos, momentos em que me sinto humano, despudoradamente humano, tenho vergonha, vergonha da minha natureza humana, de me descobrir limitado e ridículo, sujeito aos imperativos da sobrevivência. É quando percebo que sou como os pombos, que fazem dos monumentos e da história a sua latrina. Nada mais libertariamente humano como defecar em tudo como os livres e incensuráveis pombos, creio que por isso eles simbolizem a liberdade tão desejada. Mas como nem sempre somos como pombos, muitas vezes ficamos petrificados e cheios daquilo que os livres pombos nos legam. É em momentos de pura clarividência que me descubro assim, cheio de limitações e desejos, quando revelo a grandeza do que posso sentir e desejar na mais feliz e animalesca cópula. Sim, cópula, é ali que constato a minha única verdade, uma verdade velada, que pudicamente não podemos desnudar, os seres suspensos e atemporais como as estátuas que esculpimos não copulam, e por não copularem não suportam que seres miseráveis como eu, que podem copular, revelem a única verdade da qual não podem dispor, controlar, assim eles nos dizem que é feio e nos proíbem de exibir a nossa alegria copulante. Mas a minha humanidade não reside tão somente em defecar como pombos ou copular, estes são só momentos que desvelam a nossa natureza em toda a sua brutal condição, falo assim talvez para chocar, como um adolescente indômito, ou para me sentir menos medíocre do que realmente sou. O Pigmalião que sou, vive nesse mundo pálido e sem cores, de monólogos intermináveis e irrespondíveis, cercado de esculturas que só me preenchem de ilusão, fazendo com que meu mundo pareça menos mórbido e infeliz do que ele realmente é.
 

Dioniso fala através de Pigmalião

Mas eu quero da vida o vinho, quero beber a vida e libertar todos os meus demônios em uma festa bacante, onde tudo é permitido, onde o gosto alegre do vinho esteja em todas as bocas, onde o monólogo de seres apolíneos não seja tolerado, mas tão somente o diálogo de bocas ardentes e corpos insinuantes. Os corpos regados pelo desejo a dialogarem no mais feliz e erótico enlace, onde de corpo a corpo seja transmitida a única verdade possível e experienciável, a verdade voluptuosa e hedonista de seres dionisíacos como eu, ou melhor, como o Pigmalião que também sou, que é devoto de Dioniso, e que por vezes se liberta com toda a turba carnavalesca em festas delirantes e sensuais. Eu, em verdade, não sou um, mas dois, um ser sistemático e cheio de idéias que se supõe civilizado como os mais elevados espíritos do helenismo, mas tenho na base de tudo isso, um outro que primitivamente sou eu, um bicho-homem, que é puro desejo e fantasia, um incivilizado que habita as cavernas da minha identidade, ou quem sabe nem mesmo nela se encontra, mas que surge de não sei onde, e arrebata o verniz de civilização que simulo cultivar, e colore tudo na mais feliz e alegre festa regada por vinho, muito vinho como a vida deve efetivamente ser sentida, amada. Dos dois homens que carrego em mim, dessa contradição irresolúvel que eu sou, nascem as mais brutais fantasias e as mais draconianas amarras, dois mundos em um mesmo homem, dois rios paralelos que correm em sentidos opostos, eu tenho em mim a contradição da vida, e por vezes tento ingenuamente resolver os dois que eu sou em teorias ordenadoras que vinhos e ninfas põem impiedosamente por terra. Não sei qual é o melhor dos dois homens que sou...creio que alguém timidamente disse que era o primeiro, o tal filosofante, mas...agora escuto uma voz de um anônimo na multidão, que me parece embriagado, dizendo ser o pândego regado a vinho e cercado por ninfas. Sinceramente...não sei, pois agora mesmo me descubro três...os dois que descrevo e outro que sou eu agora, no meu monólogo com gosto de vinho, com a lembrança das noites tristes e solitárias ao lado de estátuas que me revelaram a história da civilização, o feito dos grandes homens...e ao mesmo tempo me fizeram sentir a dubiedade sedutora dos homens que como eu, ficam ao pé de estátuas de heróis, ofuscado pelo brilho dos deuses, e ao mesmo tempo cheio de esperança, como na caixa de Pandora, em ver um mundo mais humano.
Da vida eu quero o vinho...o amor e a poesia. O lirismo de Homero, a densidade humana de Sófocles, o amor mais intenso, como o de Orfeu e Eurídice, capaz de superar a vida e a morte. Talvez dos meus desejos só sobre o gosto doce do vinho, mas é o amor e a poesia que alimentam os meus mais recônditos delírios, as minhas mais românticas divagações; o Pigmalião que sou, também tem um mundo poético de beleza e fantasia, embora seja um mundo mágico e muitas vezes perdido, mas não consigo me afastar muito da arcádia que tenho em mim. E por isso transmuto a matéria bruta que cai nas minhas mãos na mais burilada das formas, em esculturas que só faltam falar...mas de fato, não falam, como eu, de fato, não sou nada mais que um ser sonhador, que ora encontra e ora desencontra mundos povoados por poetas e pastores.
 
 
 

 O elogio de Galatéia

Dos meus sonhos, aquele que me é mais grato, vem em forma enigmática, se delineia nos traços de uma mulher desconhecida, mas ao mesmo tempo íntima e desejada. Em suas primeiras aparições, ela, a mulher dos enigmas, se exibia brilhante, sustentando a sua alegria orgulhosa. Eu, simples escultor e sonhador, tão somente fruía o brilho que ela me permitia ver. Mas o tempo, o mesmo que destrói amores e diz que iremos morrer, tratou de esculpir uma deusa em forma de mulher, várias mulheres em uma só, mágica, ela alimentou meus sonhos e delírios; nos meus monólogos polares, surgiu o brilho aquecedor de uma luz reveladora...e eu, o escultor, pude também esculpir um mundo novo, de nobres sentimentos, pude até me descobrir estranho a mim mesmo, pois desconhecia do meu poder de amar, de me revelar sensível e amável, talvez por viver perdido entre sombras e o frio das esculturas que nada respondem; mas foi nela, na Galatéia que esculpi em meus sonhos, que encontrei um diálogo, que descobri uma face de mim mesmo que desconhecia...e me maravilhei, com ela, com o que me fez sentir em noites estreladas e até de trevas, pois ao lado dela, de sua beleza e sapiência, me sentia feliz até em meio a tempestades e trovões. Dos nossos diálogos surgiam palavras mágicas, de amor e transparência, mas como nesse mundo nem tudo são flores, nossos corações batiam em descompasso, um descompasso que o tempo genioso, desde o começo marcou com a mais irresolúvel possibilidade de conciliação, mas mesmo no descompasso dos nossos corações desejosos, o tempo e o espaço eram meros detalhes. Vivemos uma linda história de amor, regada pelo mais doce lirismo e o ardente desejo, onde a Galatéia dos meus sonhos, se demonstrou sábia e compreensível com o meu gênio ora agressivo, ora melancólico. Sendo até mesmo capaz de conjugar o verbo do nosso amor que corria em um tempo que não era igual para nós dois. Nos meus delírios, de amores e mulheres esculpidas como estátuas, eu também me revoltei, e intimamente desejei, da altura da minha arrogância, desafiar os deuses do Olimpo, chamei-os até mesmo de injustos e covardes, mas como resposta a minha arrogância, recebi um sopro frio e desolador, na minha tentativa de subverter a ordem das coisas, me descobri mais humano e limitado, e a Galatéia que burilei, me ensinou também que em lindas histórias de amor há o gosto amargo de se deparar com limites e imposições, que vem de seres superiores e geniosos como deuses. O tempo e o descompasso são ingredientes que nos mostram em toda a nossa impotência, mas é na descoberta dos nosso limites que nos maravilhamos com o gosto da sedução, da sedução de superarmos a nós mesmos...sempre desgostosos ou hedonistas, e até de desdenharmos, mesmo que por um tempo efêmero, o destino que nos prescrevem.
Foi em meio a deuses, mulheres de sonhos e descoberta de limites e destinos que eu em uma festa roguei a Afrodite que me presenteasse com a doce Galatéia, que a tirassem do mundo ideal de formas buriladas e a fizessem humana, mesmo que nem sempre se fizesse sedutora e deslumbrante como nos sonhos.(...) Se meu desejo foi atendido?! Imaginem...pois nem eu sei, nem sempre os desejos são satisfeitos tais como desejamos que fossem...bem como as respostas não são categóricas. Só recordo do brilho que apreciei em quadros que guardo em algum lugar especial de minhas mais doces lembranças, lembranças como a do vinho que ficou na minha boca.
 

A voz solitária enfim chora
 

 Das várias vozes que tenho em mim, de monólogos glaciais, de gemidos hedonísticos em festas regadas a vinho, de declarações do mais doce amor...de todas as vozes, a única que se expressa agora, é uma voz apertada, de um peito sufocado, de lágrimas que cortam a minha face. As lágrimas que correm não são de dor, nem de medo, nem mesmo de felicidade, são lágrimas que simplesmente correm, deixando um rastro torto, cheio de enigmas, onde cada um pode interpretar o Pigmalião que se é...Das minhas lágrimas, eu leio o gosto da liberdade, o gosto de se descobrir mortal e efêmero, o gosto de estar perdido em uma noite de trevas e acordar em uma praia deserta diante do mais esplendoroso nascer do sol. Enquanto monólogos revelam a nossa angústia, mistérios, os raios de luz que brilham iluminam a vida de esperança. Dos sonhos que alimento, alimento-os com o brilho de coisas como sóis que nascem, com o jogo de cores que seduz e faz crer na mais doce e feliz possibilidade de realização. Dos meus delírios nascem flores e seres como beija-flor, assim eu semeio a vida cheio de esperança, esperança de descobertas, esperança de arte, a mais bela e sedutora, esperança de amor, amor como o que sinto pela doce Galatéia, esperança que o choro liberta após uma trajetória, muitas vezes espinhosa. As lágrimas são o veículo da renovação, é nelas agora que encontro o significado das coisas e idéias que disse. No meu coração, leve e lavado pelas lágrimas, há um Pigmalião, que se sabe tão incompleto como antes, mas cheio das mais sinceras fantasias, da mais fiel crença na vida.
O Pigmalião de tantos monólogos enfim chora, para reencontrar o brilho que astros escrevem no céu, para desnudar a felicidade em alegres cânticos do mais puro lirismo.
 

Rodrigo Caldas

 
 

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