Uma grande, luminosa, alegre
bola vermelha rola. Bate na pedra e quica. Sai saltitando ladeira à
baixo. Por onde quer que a bola passe leva consigo todas as crianças.
As menininhas e menininhos correm como grandes, luminosos e alegres acontecimentos.
A esfera alucinante bate
na canela da criança loira de cabelos finos, desgrenhados pela corrida
convulsiva e salta janela a dentro, espatifando a vidraça. O vidro
grita. Os cacos cortam. A bola vermelha cai no colo do velho sentado na
cômoda poltrona de esperar morte. Furibundo, moribundo, o velho reúne
lembranças de vida e arremessa a vermelhidão pela escada.
As crianças já estão entrando, uma a uma, voando pela
janela, deixando rastros do grosso sangue misturado aos cacos de vidro.
E elas se desprendem em gargalhadas.
A bola chega à rua,
entra por uma porta do carro e sai por outra. Crianças voam por
cima, por dentro, através do carro. O motorista olha, coça
a cabeça e desaparece. Energia redonda e vermelha, sempre quicando,
desde sempre, invade o parque. O menino ruivo salta e arranha de leve a
superfície da bola, tropeça e capengando cai no chão,
quebra os óculos, os dentes, levanta e corre para mais uma tentativa.
O toque acende mais energia, doida, a bola bate numa árvore, em
outra, em outra. Compõe uma coreografia em ziguezague seguida de
um corpo de baile formado por inúmeras vontades de crianças.
Splash! A bola vermelha cai na água. Some. Crianças param
no ar. A viscosa vontade se dissipa lentamente, escorregando purulenta
dos narizes das crianças. Desabando no chão, quebrando costelas,
perfurando pulmões, desconjuntando padrões, as crianças
sedem e redescobrem a gravidade. Mas uma delas, de cabelos enrolados, andrógina,
caindo como um pedaço de tudo avista no lago familiar luz vermelha,
é a bola, é a coisa, é grande, luminosa e alegre bola
vermelha.
Corpos frágeis, amarrotados
como papel, levantam-se com movimentos plenos, unidos partem em revoada
para o alto e mergulham certeiros no lago. Peixes dourados recebem os visitantes.
São tantas crianças! e a bola fugindo as expectativas da
leveza, da verdade e da física, não sabe boiar, mas
sabe quicar pesadona no fundo do lago, movimentando carinhosamente
as algas verdes, alucinógenas e grudentas. As crianças abraçam
os peixes e mergulham em busca da bola errante. Peixes e crianças
unidos, atração, fusão, coesão...
A grande, luminosa e alegre
bola vermelha treme e num impulso total volta aos céus. Os seres
híbridos, metade peixe, metade criança, seguem fiéis
a bola vermelha. Quicando e voando o cortejo chega até a cidade.
Atônitos os cidadãos assistem a sua chegada. Batidas de carro,
suicídios, estupros, venda de redenção a prazo, o
padre exorcizando tão feios demônios de lindos olhos inchados,
aqueles olhões brilhantes de criança. Gritos, caos, desespero,
desestruturação, desordem.
Nova ordem.
Dafne Berbigier