ESPECIALISTA EM ORQUÍDEAS

                O pai preocupado com ela. Três filhas: Uma bióloga, realizando pesquisas sérias, lidando com água do mar, trabalhando firme. Era notícia, era manchete. Um talento. Um orgulho. E o pai empurrava o indicador no recorte gasto do jronal e ela era induzida a ver ver outra vez a foto da irmã e se indagava: — Por que insiste em ser feia? Aquela roupa preta e larga, inteira desengonçada.  Na ocasião da fotografia provavelmente falava sobre o oceano e abrira os braços cobertos com mangas amplas. Parecia um quadro negro. Era um quadro negro. A cabeça, miudinha e inclinada destoava do conjunto. A cabeça de um anão, decepada e se equilibrando num quadro negro. Mas ela era um gênio. Deduzia. Intuía, sábia. — E a outra? — indagava o pai e ele mesmo explicava a outra: — Uma santa. Irmão de caridade, vocação pura. Desde criancinha era piedosa e de uma bondade imensa. Um dia seria canonizada. Ela concordava com a cabeça. Era mesmo uma santa. Sempre ensebada e cheirando fedor. Uma santa. — E ela? — perguntava o pai. — Um problema. Indecisa, cabeça ruim para os estudos, nenhuma afinidade com os trabalhos da casa. Uma preocupação. Vinte e três anos e não se definia. A família toda talentosa, descobrindo a vocação cedo, batalhando e ela, ali, perdida entre aqueles livros e sem entender nada. — Pois então? Não era reprovada de forma sistemática ano após ano? Agora, aquel angústia, freqüentando curso à noite por que passara da idqade de turmas regulares. Ele era pai. Sentia uma tristeza enorme e não podia esconder. Esticava a falação. Conversas longas. Contava que era importante saber das direções. Saber para que tinha sido feita. Era importante descobrir: — Todo mundo tem uma serventia, droga! — desabafava.
                Ela baixava os olhos, cheia de confusão. Não era talentosa? Não era? Não? Talvez melhor ela contar. Ela, da mesma forma que as outras, descobrira cedo suas direções. Seu talento. Tudo tão insólito. Difícil acreditar que o pai entendesse sua vocação. Uma arte que ela havia descoberto com susto e perplexidade. O pai, afinal, tinha três filhas talentosas. Ela saía. De cabeça baixa, ela saía. Devia contar? Podia? Era sempre assim. Fora de casa, mal virava a esquina, tornava a boca vermelha, agitava os cabelos todos numa só direção, alteava os ombros, baixava o decote e apertava o cinto afofando o corpo do vestido num gesto que encurtava o comprimento da saia. E a pessoa que nascia era surpreendente. A filha talentosa do velho. A mais talentosa. Com passos firmes seguia ligeiro e encontrava o namorado. Nunca o mesmo, que não gostava de repetições. E era tanta afoiteza no comportamento, tanta convicção em sua capacidade de dar e receber carícias, que se tornava cada vez mais audaciosa e terrível. Uma especialista. E ela presenteava o parceiro com sustos, prazer e descoberta, e isto, cada um que saía com ela podia testemnhar. porque de certa forma, o encontro furtivo, no canto mais abandonado do muro, na sombra da árvore mais escondida, na parede mais pichada e distante de qualquer olhar, era sempre inesquecível, único. Suas mãos eram sutis no desabotoar o botão ou abrir o zíper, percorrendo caminhos entre tecido e pele e pelos, seguindo até encontrar a estranha flor do homem, cheia de mormaço e umidade, tão lina assim inflada, tão carente, que ela sentia os olhos cheios de lágrimas, com a mesma piedade que a freira sentia diante da chaga mais fétida de seus pobres. E prosseguia, cautelosa e beijava reigões inquietantes e raramente tocadas, provocando arrepios desconhecidos, com a mesma delicada intuição da bióloga, ante os vegetais marinhos, sondando mistérios. Ela reunia o que de melhor havia nas duas, quando com dedos exímios, ternos e firmes se apossava das formas do eventual eleito e a elas se ajustava numa pressão enervante, que nada definia, até que todo pronto, quase em desespero ele mergulhava nela. Borboleta espetada por alfinete, se abria suavemente, como a porta de um castelo e recebia o visitante, ofuscante e ofuscado, valorizando cada milímetro da pele dele. E o que se cumpria, de repente, parecia tão inocente, tão natrual, tõa improtante, que todos aqueles que compartilhavam percebiam que nesta hora participavam de uma espécie de ritual, de um sagrado segredo e que o gesto não era de amor até parecia, até podia se tornar, já que acenava com vôos e mergulhos de um jeito que beirava o primitivo, lembrando a primeira vez em que se efetivara uma ligação. E o escolhido vislumbrava o que era morrer e pensava morrer, apesar de que o interior dela era quente e cheio de vida. Também a permanência nela se assemelhava ao misterioso ato de devassar corredores com paredes estreitas, mas de textura tõ macia e inquietante, tão maleável e lúcida, que não havia como sofrer ou sentir-se perdido, já que no final de tudo existia o brilho, a luz, como se além das paredes que prendiam e subjugavam houvesse uma festa inteira preparada à espera dele, o convidado. O único e possível convidado. E realmente havia uma festa. Era o desmaio, a inconsistência e finalmente a certeza de Deus. Gavia Deus dentro dela. Gavia. E todo o resto se concluía suave, uma alegria enorme nascendo e o que ela libertava era uma orquídea mastigada e frágil, ao mesmo tempo que muito mais experiente e astuta.
                Então ela partia e, na primeira esquina, se tornava outra vez a moça simples que chegava em casa e abria os livros para dissimular e esconder-se. Dividido entre ela e a televisão, o pai sempre recomeçava. Insistia naquela história de futuro, de vocação, de talento. Ela olhava e olhava como se não entendesse. deveria contar? Dizer que era a mais talentosa das três? Explicar que entendia de orquídeas? Que era uma especialista? E o pai insistia em compará-la com as outras, evidenciando as desvantagens dela. Neste dia, nesta hora, finalmente, decidiu contar: — Tudo bem, velho, olhe aqui e me escute...

Regina Benitez


 
 

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