O rio ficara para trás, perdido na mata. O pequeno Cristo atravessou a senda estreita que conduzia ao jardim — ocultada por um espesso véu de teias de aranha - e logo deparou-se com a serpente, a guardiã: os três chifres ancestrais da víbora despontavam no alto de sua cabeça triangular, apontando diretamente para o rosto do menino! Ela o mirava imóvel, com seus olhos de pupilas riscadas, quieta, enroscada, quase invisível entre as folhas secas, mas o menino Jesus podia ver a ponta curva de seu rabo, que ostentava um poderoso espinho negro. Um espinho mortífero suspenso no ar. Rabo de escorpião — pensou o pequeno, assustando-se - uma víbora com rabo de escorpião!
A serpente estava parada em seu lugar de costume, sonolenta e desinteressada da vida — embora sempre de olhos muito abertos — quando viu o véu romper-se em chispas de luz e um magnífico rapazinho saltar da escuridão da mata.
A face do menino, morena e lustrosa, contrastava vivamente com a facemedonha do ofídio.
A serpente e a criança miraram-se longamente.
Jesus finalmente reagiu, rompeu o silêncio e a paralisia que o tomava.Desejando livrar-se do olhar hipnótico da guardiã, perguntou como andava o paraíso. A cobra sibilou, exibindo sua língua bipartida, e nada respondeu. Não era à toa que a serpente guardava o paraíso! Tinha fama de ser o mais astuto dos animais que haviam no jardim.
O rapazinho, não dando-se por vencido, com eloqüencia inesperada explicou à serpente que haviam humanos que gostariam de voltar ao jardimde delícias (percorrendo a senda proibida) e que ele fora incumbido de resgatá-los.
A víbora sorriu e gargalhou, maliciosa, e foi rindo cada vez mais à medida que mergulhava no olhar inocente da criança. Gargalhou alto, a boca frouxa, as duas presas pontiagudas resvalando para fora. A língua bipartida escancarou-se e os olhos calculistas afinaram-se, o ferrão negro dançou no ar, acompanhando os movimentos espasmódicos do ventre longo. A cobra inteira sacudia-se de tanto gargalhar, mas súbito, como se algo a tivesse alertado, estancou o riso e assumiu novamente sua postura cautelosa e vigilante. Cara Luzzzz — disse a peçonhenta para o tenro Cristo — o paraísssssso sssempre essteve aberto, diga aosss humanosssss que elessss podem voltar sssempre que quisssssserem.
O menino achou estranha a resposta da guardiã, mas intuía que não deveria contestar sua palavra. O pequeno Cristo agradeceu à víbora e virou-se para atravessar a senda novamente, que a esta altura já se encontrava quase totalmente selada pelo véu de teias que as aranhas teciam sem parar. Foi quando viu - no espelho dos diminutos olhos das aracnídeas — a serpente se movimentando em total silêncio às suas costas, elevando bem alto seu ferrão escorpiônico e apontando o espinho mortífero para atingi-lo diretamente na nuca.
Uma fração de segundos... Um salto preciso para o lado, num átimo, e o ferrão negro cravou-se no solo. A traiçoeira, mais que depressa, tentou armar novo bote para fulminar o filho de Deus, mas ele escapuliu espetacularmente, atravessando o véu de teias com um vigoroso impulso.
Os humanos o esperavam à beira d'água. Os descendentes dos primeiros. O menino Jesus relatou o que havia acontecido e descreveu como a guardiã do paraíso quase o matara e que as possibilidades de voltar ao jardim de delícias eram remotas.
Assim que o rapazinho findou o relato, os homens ficaram irados. Revoltaram-se contra a sorte de vida que Jesus lhes revelara! Foi a primeira vez que Ele morreu: Via Aqua! Muito antes da via Crúcis. O rio caudaloso refletindo as faces furiosas, enquanto o rosto do pequeno afundava. Nunca conseguiu ficar muito tempo na Terra.
Marta Rolim