É bom passar de ano quando se está e se sente bem.
Dever a bancos, mas não dever à consciência.
Ser movido a desafio, e não a dinheiro.
Estar na sede do poder, mas não ter sede de poder.
Não prejudicar, se não puder ajudar. Não roubar. Não chantagear. Não iludir. Não ilicitar.
Abraçar, não apunhalar.
Estender as mãos para auxiliar, não para extorquir. Elevar, ao invés de fazer cair.
Não buscar fora, no mundo, o que só se acha dentro, no próprio ser.
Sobreviver após a vida e, ao ser lembrado, sê-lo com a lágrima, não com o cuspe. Com reconhecimento, não com desmerecimento. Uma saudade que até possa ser brindada com um sorriso que imortaliza, não com o só riso que ironiza.
Assumir, doce e espontaneamente, a ingenuidade. E não se conformar com a esperteza, a malícia cavando-se côvados de cova.
Que bom enfrentar as dificuldades, e não criá-las para os outros. Ser bom; se possível, ser com. Ser humilde, mas não humilhado. Ser fúria e ser forte ante a violência menor; mas ser manso e criança ante o Mistério Maior.
Silenciar, quando estratégico; mas gritar, bramir, rugir, quando indispensável.
Reconhecer-se feito à imagem e à semelhança de Quem o fez, mas sem a perfeição do Bem/Feitor. Ter a consciência de que somos filhos de Deus, não o próprio Deus.
Lembra-te, ó, homem: Tu não te tornarás pó: tu ÉS pó. És berro, és borra, és barro. És pá, és pé, és pó. A terra que violentas é tua mãe. O solo que pisas é teu irmão. TU ÉS HOMEM, TU ÉS HÚMUS.
Entretanto, o essencial de ti não veio com o barro. Veio com o toque cálido dos lábios soprando o sopro vívido de Deus.
Tu és a tua alma.
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(2)
ELA
Eu conheço esta criança. O rosto sério. O ar grave. Essa criança governa o homem. O homem tem medo dessa criança. Medo de envergonhá-la. De não merecê-la. Eu não posso mudar a criança; posso colocar nela uns enfeites, tentá-la com um novo brinquedo, mas é o espírito dela que brinca comigo. A criança é anterior ao homem. A criança é mais velha que eu.
E eu aprendi a respeitar os mais velhos.
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(3)
"I"
Busco na Língua Inglesa a magreza, a solidão de um pronome: "I". Sempre em maiúscula (reza a Gramática), como se para realçar o simbolismo, o grafismo, o girafismo, o isolamento desse ser primeira pessoa: eu, "I". (No futuro, alguém haverá de confundir o título com o número 1, com o algarismo romano, com o nome da letra "I", com a própria letra "I". Entretanto, reafirme-se: aqui, "I" é uma palavra, melhor, um conceito, uma sensação.)
É essa anorexia do "I" inglês,
é essa letra desvalida de firulas, essa sua inapetência por
lantejoulas, esse seu "desapetite" por adereços, essa sua não-fome
pelo que é acessório, esse talvez desamor ao excesso, essa
pregação do quase-nada, do "minimum minimorum", é
isso o que, neste instante, me atrai no pronome inglês: "I".
Uma letra — corrigindo, uma palavra — tão despida e, em igual tempo,
tão vestida.
Quase vazia de substância e transbordantemente
rica de sentidos.
É assim, à maneira do "I", materialmente despido e espiritualmente abastecido, que eu recebo as manifestações espontâneas (inclusive a intenção das que foram censuradas em jornal), pelo passar de ano.
Passar de ano é pagar aluguel ao Tempo
pela dádiva de morar na Vida. Creio estar sendo bom inquilino.
Talvez mereça renovação
de contrato, "ad multos annos".
Se Deus quiser, parabéns para mim. (Amanheceu. Então, Deus quis. Obrigado, Pai Nosso, que estais no céu...).
Edmilson Sanches