I.
Pelo que me alembro, eu estava era me equilibrando entre os galhos, tentando colher uns abacates pra comer. Foi quando avistei lá no alto um bem graúdo, desses bem bonitos, difíceis de pegar. A verdade é que nunca se tem por perto o aprazível. Mamãe mesma dizia, a vida não é coisa fácil, não. Distraído com a lembrança desses bons conselhos, que insistentemente ecoavam nesses átimos de instante, me descuidei. Ao esticar o corpo e tentar agarrar a fruta, levei um baita dum escorregão, caí daquela altura.
A sensação primeira foi de dor, é claro. Mas, como que por encanto, a dor, que definida e definitivamente se instalara em meu dorso, subitamente desapareceu, e eu me vi tomado por uma idéia insana. Não, insana era uma palavra sem existência naquela minha época. Alumbrado por tamanha estranheza, tomei o caminho de volta para casa. Estava decidido, eu voaria.
*
A tarde quase findava quando eu cheguei, pulei a porteira e, a passos mansos, fui em direção à varanda. Mesmo sem saber como faria para alçar vôo, uma branda felicidade tinha tomado conta do meu coração. Sentei-me no murinho e, pela janela da cozinha, minha mãe notou minha presença: "O jantar já vai ficar pronto, já, já". Nem respondi. Satisfazia-me em contemplar o caloroso manto de penumbra que sobre mim pousara. Esplêndido, o sol bravamente lutava por permanecer no alto do céu. Aquela minha idéia, se advinda de acasos, ou obra daquele mesmo ocaso, isso decerto eu nunca saberia.
Sei que uma alegria inconseqüente incendiava meu devaneio. A partir dali, seria só meu aquele segredo, desses bem guardados em cofre escuro. Sozinho eu voaria, não importasse como, estava decidido.
Lá do fundo me chamavam: "O jantar está pronto". Ignorei e fui lá pra frente. Sequer comeria, enquanto não alcançasse o meu objetivo. Envidei todos os esforços, haveria de realizar aquele sonho estranho, oriundo de minhas maluquices.
"Ô, menino! Vem jantar."
Fechei os olhos e, fascinado pela brisa fresca que silenciosamente preparava
a noite, senti o peso das plumas que é o sono.
II.
Quando tornei abrir os olhos, dei por mim deitado ali na relva, a vista ofuscada pela luminosidade da aurora, o corpo úmido de orvalho, uma certa zonzeira e, de um susto, me lembrei que precisava ir à escola. Ai, meu Deus! Olhei para o pulso, tarde demais. Irreversivelmente, os ponteiros indicavam, tinha passado da hora. Ai, ai, e agora, o que é que eu faço?! Quando chegar em casa, pensei, meu pai vai me dar uma surra daquelas.
Naquele desespero, houve um clareamento das idéias. Subitamente, me lembrei do sonho que tivera. Eu subia naquele abacateiro e, do alto de seus galhos, audaciosamente me lançava em direção aos céus. O vento içava meus cabelos. Sempre que estava quase por bater no chão, estirava os braços para obter equilíbrio. E conseguia. Com minhas asas de vento, sobrevoei a fazenda inteirinha, e o fiz por muitas e muitas horas.
Eu tinha era encarnado o intenso alvedrio dos pássaros. Então, por que é que eu deveria voltar para casa? Para quê? Apanhar? Olhei novamente para o pulso e, numa atitude raivosa, estourei a pulseira do relógio, jogando-o para bem longe.
Depois, fui pro meio do mato.
*
Passado já algum tempo, enfiado no meio da mata, cheguei ao abacateiro do dia anterior. De pé, encarei-o de cima para baixo, de baixo para cima. Tão alto, tão bonito! O sol, a pino, permeava sua aguda luz por entre a densa cobertura de folhas e galhos, capaz de cegar quem olhasse para cima. Um calor! O jubiloso canto das cigarras, gorjeios, sinfonias que tornavam o dia ainda mais quente. Atordoado, enxuguei a testa úmida de suor. Sôfrego, respirei o mormaço que havia no ar, e foi no turbilhão dos sons que adivinhei o infinito. Bem à minha frente, a razão pela qual eu ali me encontrava naquele momento. A árvore, os sons, o vento. Era como no sonho, eu tinha de acreditar.
Sem vésperas, concentrei em meus braços toda a força que tinha, comecei a escalar o abacateiro. E eu era valente, subia sem dificuldades, de um só impulso, cheio de bravura. Minha determinação, a de uma águia feroz; meus devaneios, os de uma borboleta. Por fim, cheguei ao topo.
Avistei o panorama simétrico de folhas e galhos, alguns pássaros. Quis medir a altura, um tremor nas pernas. Homem algum podia voar, eu estava era ficando louco. E se conseguisse, o que faria? E se desse com a cara no chão, como ia ficar sabendo? Seria o mesmo que esquecer alguma coisa antes de lembrar. Repensei, tinha de acreditar. Fechei os olhos, tentei controlar a tremedeira nas pernas, prendi a respiração. Aí, saltei. O sol estava pelando e, quase por relar no chão, como da outra vez tornei a esticar bem os braços, o vento içando os meus cabelos.
Desta vez, no entanto, encanto algum foi capaz de evitar o doloroso impacto da queda.
*
Caído no chão, feito um moribundo, por pouco não chorei. O milagre do vôo não acontecera. Minhas esperanças esmoreciam. De águia feroz, voltei a ser o menino de antes, o mesmo de sempre, covarde e criança. E, nestes meus ermos, foi que vislumbrei uma nova possibilidade. Minha garganta ardia em sede. Levantei-me e, desatinado, me pus a correr. Corri. Raivoso, corri. As asas, é claro! faltavam-me as asas de um arcanjo, de um animal, de um ser qualquer. Mas como?!
Não obstante a minha descoberta, enveredei pras bandas de um riachozinho que havia ali por perto. Naquele momento, a preocupação maior era a de apagar o inferno cáustico que se acendera em minha garganta. De chegada, da goela pra baixo eu mandei água, revigorava-me; e, no claro espelho das águas, enquanto eu molhava o rosto, a peça que faltava ao quebra-cabeças fez por se encaixar. Avistei o reflexo das bananeiras que se perfilavam às minhas costas. As asas, isso mesmo, as folhas de bananeira seriam as asas. Meu coração se encheu novamente de esperança. Corri para de perto e juntei o que pude. Infatigável, prazerosamente, nisso gastei um bom tempo. Colhido um bom tanto, fechei os olhos e imaginei um anjo, um ser alado botei reparo, memorizei os contornos suntuosos das asas.
Com barbante, das folhas tricotei um par de asas iguaizinhas às do anjo. Depois de vesti-las, senti que faziam parte de mim mesmo, agregaram-se ao meu ser, um membro novo rasgando a minha pele, com suas raízes penetrando fundo no meu dorso. Tomaram tamanho, e um arrepio, desses que nos arrebentam pelas vísceras até explodir no rubro das espinhas, friolentamente me trespassou. As dores me punham de joelhos. As asas eram agora pele, carne viva, nervos, tendões, veias, resquício algum de vegetal, alvas, seráficas, eram asas, e eram minhas.
Cheio de imponência, olhei em derredor. Eu me tornara um ser diverso, volátil. Sem demora, me levantei, certo de que agora, sim, eu alçaria o meu vôo, e voltei para junto do abacateiro. O calor da tarde era inóspito.
Cheguei e, encarando-o com um desdém muito grande, sorri. Agora você não me pega, eu falei. Meu coração bateu no ritmo mais certo. Orgulhoso, fui subindo, galho por galho em cada lufada do vento morno da tarde eu premunia o milagroso vôo que viria e, de novo, cheguei ao topo. O céu estava em fogo, triste, avermelhado do sol que não tardava em se pôr. Desta vez, destemido por completo e sem quaisquer ímpetos de tremura lancei-me.
Esborrachei-me no chão, gemendo de dor e de remorso. Olhei para trás, não eram mais que folhas de bananeira, tricotadas e presas com barbante. Perdida toda a minha crença, chorei.
III.
"...será como voar deitado nas plumas macias do dorso de um passarinho, e voar. Os seus braços apertados em torno do passarinho vão sentir a pulsação no peito dele que será a batida de todo o sentimento do mundo."
Ana Miranda
Eu estava era ficando maluco. Onde já se viu, voar? Quanta tolice, asas imaginárias. Meu corpo já todo machucado, esfolado, uma surra a mais não faria a menor diferença. Arrependido, achei por bem voltar para casa. Só tinha de chegar antes de escurecer. Caso a noite baixasse, teria de ficar ali mesmo, no mato, o que haveria de piorar tudo. Desacorçoado, despi as folhas de bananeira e peguei o meu rumo. Eu me sentia triste e cansado.
Caminhava, caminhava, mas não rendiam os meus passos. Por sorte, ainda me restava algum tempo, as primeiras estrelas ressurgindo no céu. Resolvi imprimir no meu andar um pouco mais de ânimo. Só não corri porque estava cansado demais.
Quando cheguei à porteira, notei, estava trancada. Parei um instante e percebi que algo de muito estranho estava acontecendo. Havia caminhado um bom tempo, e ainda era dia. Olhei para o céu e compreendi que era noite, sim, mas na altura do poente o sol persistia. Tão bonito e tão estranho! Fiquei deslumbrado. Por instantes, permaneci estático, estarrecido com tamanha beleza.
Absorto ainda, pulei a porteira e corri em direção à casa. Ao chegar, tudo trancado, portas e janelas. Era provável que estivessem na cidade, talvez à minha procura. Tomei a decisão de subir no telhado, a fim de descansar e observar aquele estranho fenômeno que nos céus se desenrolava.
Subi, mas, desta feita, como um menino normal, sem valentia, sem a encarnação de anjos ou animais ferozes. Deitei-me nas telhas, pus-me a investigar o céu. Indaguei os seus motivos. Era um mistério tão incomum. O sol no meio da noite? Nem nas lendas.
Foi quando, no fundo do horizonte, um ponto se fez visível. Endireitei as costas para melhor observar. Era uma pequena mancha, uma figura que, devagar, vinha crescendo a partir do poente, se aproximando, se encorpando, até assumir a forma de um pássaro gigantesco. Seria cisma de minha parte, ou um pássaro gigante passava de sobrevôo pelas nossas bandas, fazendo acrobacias no céu, malabarismos?
Olhei para baixo e vi meu pai, bem ali debaixo do telhado, abrindo a porta de casa. Gritei, berrei: Ô PAI!, e ele não me escutou. Era possível? Eu, a pouquíssimos metros de distância? Não tinha como não me escutar. Mas nem pro céu ele olhou? Não se deu conta de que o sol ainda brilhava? De que era noite e que também era dia, tudo ao mesmo tempo. E o pássaro gigante, não viu? Ô PAI! Ô PAI!, gritei bem alto outra vez. Distraído, ele foi entrando. Impossível! Talvez fingisse não me escutar como uma espécie de castigo?
Não consegui reunir forças para descer O espetáculo no céu era melhor, era único. O sol, o céu, o pássaro fingiu que ia cair, deu vôos rasantes , o bico comprido e dourado, as penas brilhantes, as asas de zéfiro.
Voava de cabeça para baixo, agia como se fosse dono do tempo, e de todo o sentimento do mundo. O sol brilhava, talvez para eu pudesse ver melhor o pássaro. Era como se o universo todo, parado, assistisse em silêncio as cabriolas aéreas do animal. O céu rubro e azul, a luz e as trevas em peleja, um panorama oscilante, feito um mar em labaredas. Até que pouco a pouco, vagarosamente o pássaro veio se aproximando, depositando em mim os seus olhos.
Enfim, pousou à minha frente. E foi um momento majestoso. Temi o primeiro toque, mas arrisquei, era manso. Nós dois, homem e pássaro, um ao outro nos examinamos em silêncio. No alto do cocuruto, ele tinha um penacho, que, às vezes, inesperadamente se eriçava. Depois voltava ao normal, penteado talvez pelo vento, ou, quem sabe, movido por uma emoção muito profunda. De repente, tive a compreensão do que me esperava. Montei nas costas do pássaro, abracei-o e senti a pulsação do seu organismo. Ele estufou o peito, depois, bem devagar, foi expirando até esvaziar o pulmão. Tornou a inspirar e, num bater de asas, ergueu-se no ar, produzindo um ruído surdo. Um vento morno soprava em todas as direções.
Juntos, ascendemos. Em vôo.