LIA E EDGAR

Lia era um caso perdido. Pelo menos era o que diziam as más línguas. Ou as invejosas, como ela gostava de repetir. Lia era filha de um juiz famoso e de uma dona de casa que queria ser bailarina. Ela nasceu em Petrópolis e cresceu rodeada de presentes. Tudo que o pai podia dar pra poder suprir a timidez que tinha de lidar com ela. Lia não era filha única, mas era como se fosse já que o irmão não levava gosto pras coisas judiciais e ela estava sempre colo da na barra do pai. Lia cresceu perguntona e não levava desaforo pra casa. Ao contrário de sua amiga Antonia que casou com um advogado famoso só porque o pai queria, Lia escolhia os namorados mais incorrigíveis do bairro sob os olhares negligentes do pai. "Há que haver compaixão nessa vida", ela pensava. As pernas de Lia não eram torneadas, mas seus peitos eram maiores do que todas as suas amigas da faculdade. Ela gostava de roupas caras e amigos excêntricos. Estava sempre no meio de atores, músicos, intelectuais e chegou a casar com um diretor de teatro nascido em São Paulo que adorava montar peças de Beckett. E foi num desses ensaios teatrais noturnos antes de uma estréia importante num teatro do Rio que Lia conheceu o Edgar.
Edgar era de Vila Isabel e cresceu andando de cima pra baixo na Avenida 28 de setembro com seus amigos do América e do Petisco. Ele nunca gostou de estudar e o único jeito que a professora de Estudos sociais conseguiu segurar o garoto na cadeira foi flertando com ele. Ela o convenceu de fazer um curso de teatro que estavam oferecendo no colégio Prado Junior e acabou atraído por uma palestra de um iluminador famoso. Ele esqueceu da timidez e fez tantas perguntas ao tal iluminador que acabou sendo convidado a trabalhar como aprendiz. Cansado das calçadas com as partituras quebradas de Noel e das viagens ao Meier pra ver seus avós todo domingo, Edgar aprendeu a pegar o 438 até o Leblon e a andar até a casa de Carlos Vegas, o iluminador tantas vezes premiado por suas concepções de luz excepcionais. Carlos vivia no último andar de um prédio antigo que não tinha elevador. Um dia Edgar chegou no apartamento de Carlos e ficou tocando a campainha por quinze minutos sem que ninguém viesse atender. Ele só não foi embora porque as risadas que vinham do apartamento não deixavam dúvida de que tinha alguém em casa. Depois dos tais quinze minutos Edgar começou a gritar do lado de fora, mas acabou parando porque a vizinha da frente abriu a porta e jurou que chamaria a polícia se aquela loucura não parasse. Ele já tinha decidido voltar pra casa quando uma mulher de cabelos curtos e pretos escancarou a porta e soltou uma baforada na cara dele. Ele tossiu e ela caiu na gargalhada. Edgar ficou tão sem jeito que resolveu ignorar a moça e correu pra cozinha onde normalmente Carlos o recebia pra um bate papo matinal. A mulher de cabelos curtos deu de ombros e voltou pra cozinha. Pegou sua bolsa, um pacote encima da mesa, beijou os lábios de Carlos e foi embora. Edgar escondeu o desconforto e a surpresa de encontrar uma mulher aquela hora da manhã no apartamento de Carlos e esperou calado por uma explicação que não veio. Carlos tirou um cigarro Hollywood do bolso e acendeu calmamente enquanto preparava um café pros dois. Edgar balbuciou algumas perguntas a respeito da produção da peça que iria estrear no dia seguinte e que Carlos estava dirigindo e fazendo a iluminação também. Dali surgiu uma conversa animada e cheia de detalhes  a respeito dos problemas de tempo que ele estava tendo. O tempo da peça estava variando por causa de Jonas, o ator principal. Jonas começou a fumar um baseado pra se acalmar cada vez que ia pisar no palco e estava arrastando o espetáculo. A situação estava insuportável, mas não havia tempo para uma substituição.
Às cinco horas da tarde Carlos e Edgar chegaram no teatro e esperaram pelo elenco enquanto colocavam as últimas gelatinas vermelhas que faltavam para a cena enraivecida de Jonas no final do primeiro ato. Por volta das oito da noite a mulher de cabelos curtos chegou acompanhada de uma amiga. Carlos acenou pras duas entrarem enquanto a cena ainda estava rolando. Lá de cima da escada Edgar notou que a amiga de cabelos compridos esticou as pernas na poltrona a sua frente enquanto esperava pelo final do ensaio. Ele desceu da escada e fingiu olhar pro rosto dela como se estivesse checando onde a luz estava batendo. Ela olhou de relance pra ele e aí ele notou como os lábios de Lia eram grandes e seus olhos eram amendoados. Ela sorriu e perguntou se ele precisava de ajuda. Ele disse "não obrigado" e retirou a escada silenciosamente pra não incomodar o elenco.
Carlos pediu uma reunião dali a meia hora e um ensaio geral começando às dez da noite. O canhão de luz ainda não havia chegado e Carlos pediu que Edgar fosse correndo até Botafogo com a Lia que também tinha que pegar a roupa da cena final lá na Lauro Muller perto do Caneção. Antes de sair Edgar viu Jonas conversando com a Lia na porta do teatro e reparou que a sua testa estava franzida. Já na calçada, Lia e Edgar entraram no Fiat dela que estava estacionado no outro lado da rua. Era uma noite estrelada e podia se sentir o cheiro de maresia impregnando o ar.
Quando Edgar entrou no carro Lia estava tirando um baseado do porta-luvas. Perguntou se ele tinha um isqueiro, mas acabou acendendo com um fósforo de uma caixinha do Caesar Park que achou entre as filipetas e os cartazes da peça. Eles não falaram muito durante a viagem. Era tanto trabalho pela frente que só sobrou tempo pros primeiros olhares de reconhecimento. Lia notou a barba rala e as pernas morenas e musculosas do Edgar. E Edgar, encabulado, fingiu ser um cara descontraído pedindo pra dar um tapinha no baseado dela. Depois da segunda ou terceira tragada ele observou que ela tinha uma cicatriz no pescoço e que suas orelhas tinham mais de seis brincos em cada um, todos eles de prata. Eles passaram a madrugada toda subindo e descendo escadas, cortando gelatinas coloridas, costurando, bebendo café e contando as piadas mais ridículas uns pros outros. Lá pelas quatro da manhã os olhos de Lia começaram a fechar e ela desmaiou entre as poltronas do teatro abraçada com a mochila verde do Edgar. Às oito da manhã Carlos enxotou todo mundo pra casa e mandou todos voltarem às quatro da tarde. A moça de cabelos curtos passou a noite no apartamento de Carlos e Edgar também. Edgar tentou dormir, mas ainda ficou uma meia hora acordado ouvindo a mulher de cabelos curtos arfando no quarto ao lado.

No dia seguinte Lia chegou às sete horas da noite e não olhou pra ninguém. Ela usava óculos escuros e volta e meia assoava o nariz com um lenço super molhado. Lia iria pilotar o canhão da esquerda e já eram quase oito horas quando Edgar notou que ela havia sumido. Ele correu até o camarim e disse a Carlos que não sabia onde a Lia estava. Carlos pediu pro  assistente de som tomar conta do canhão e disse pro Edgar que não tinha tempo pros ataques de criancice da Lia. Edgar não entendeu muito bem, mas não havia tempo para se preocupar com mais nada. As cortinas iam abrir dali há dez minutos. Antes de ir pro lado esquerdo da coxia e se preparar para o começo do espetáculo, Edgar resolveu ir ao banheiro. E foi na escada que liga o camarim ao segundo andar atrás do palco que Edgar achou a Lia. Ela estava esparramada com os olhos parados fitando o teto, os braços ao longo do corpo e uma seringa jogada num dos degraus. Ele levantou o corpo dela e o ajeitou de uma maneira carinhosa no colo dele. Havia um sorriso maroto na boca dela e uma carta amassada na mão esquerda onde só dava pra ver "filho da puta" escrito em letras garrafais. Ele tentou tirar a carta da mão dela, mas ela reclamou como um animal selvagem. Ele então acariciou o rosto dela e ouviu petrificado o último suspiro sair dos lábios carnudos de Lia.

Kátia Moraes


 
 

« Voltar