Tá Ciara, depois ai...

Abriu a porta do quarto e olhou o marido fazendo carinho na filha enquanto assistia na televisão uma comédia engraçada sobre casamento. Na tela do computador o cursor piscava em cima da noticia da morte da cantora Cássia Eller. Com um aperto no peito lembrou de outra morte, de outra pessoa que se fora de maneira boba, quase que sem sentido.
As lagrimas ameaçaram descer, mas lembrou da mãe dizendo que chorar a morte de uma pessoa faz com que o espirito fique vagando sem encontrar pouso certo.
Uma vez mais se permitiu relembrar o sobrinho morto, as mãos macias,  o peito cabeludo, os olhos claros, o cabelo que ele tentava a todo custo alisar, o sorriso que mostravam dentes brancos e brilhantes, o andar na ponta dos pés, a voz arrastada com sotaque francês, lembrança de muitos anos morados na França, a maneira engraçada como se despedia, sem nunca dizer adeus ou até logo e o cheiro, aquele cheiro que exalava pela casa anunciando a chegada dele.
A saudade bateu forte, acelerou o coração, então ela deixou que as lagrimas caíssem. Fechou os olhos e refez todos os passos desde o momento em que o irmão ligou às 14h do dia 15 de maio:
– Mana aonde tu tá?
– Em casa, o que foi?
– O Luciano me ligou agora e disse que tá passando mal com uma dor.
– Dor aonde Cacau?
– Ele não sabe explicar direito, parece que é do lado. Eu vou levar ele no Pronto Socorro, tu pode ir até lá encontrar com a gente?
– Vou tomar um banho rápido e já vou.
Desligou o telefone sem detectar a urgência na voz do irmão. O filho entrou no quarto perguntando o que estava acontecendo. Enquanto trocava de roupa explicou  que o primo não estava bem:
– Fica calmo, não deve ser nada de grave.
– Mãe, eu vou contigo, o Luciano não costuma reclamar, ele realmente deve estar sentindo muita dor.
Entrou no carro com o filho do lado pedindo a Deus que estivesse certa, que nada de muito grave estivesse acontecendo.
O alarme disparou no momento em que viu o sobrinho muito pálido, curvado ao lado do carro do irmão.
Dentro do hospital a médica da emergência diagnosticou:
– Ele está com uma crise de cólica renal. Vamos fazer a medicação para que a dor diminua e amanhã a senhora procura um urologista.
Na sala de medicação, enquanto ele gemia reclamando da dor intensa, ela brincava tentando desviar a atenção e esperando para que a medicação fizesse efeito.
Relembrou a volta para casa, dos gemidos dele, dos telefonemas desesperados para a mãe. Lembrava do irmão chegando com a medicação, dele sentado na cama enquanto a injeção era aplicada. Depois o silêncio, enquanto ele ressonava. Lembrava de ter saído do quarto na ponta dos pés para não incomoda-lo.
O dia amanheceu e ela correu para quarto pra saber como ele estava:
– Luciano?
– Oi Ciara.
– Tu melhorou meu filho?
– A dor passou, só a minha barriga que está inchada.
– Deve ser pela falta de alimentação, quer um copo de leite quente?
– Agora não, depois tá?
Se viu novamente na cozinha preparando o almoço, teria que ser alguma coisa bem gostosa para abrir o apetite do sobrinho, o que poderia ser? Peixe, lógico, ele adorava peixe. Com o almoço pronto tentou faze-lo comer:
– Eu fiz peixe da maré quer que eu faça um prato pra ti?
– Agora não, depois ai Ciara.
Entrou no quarto decepcionada, alguns minutos depois escutou os passos dele pela casa, saiu do quarto meio alarmada:
– O que foi? Tá doendo de novo?
– Não, eu estou com sede, vou tomar água e tentar comer alguma coisa.
– Quer que eu te ajude?
– Não precisa, obrigado Ciara.
Ele tentou comer e vomitou, ela se preocupou, ele garantiu que era porque o estômago estava mais de 24 horas sem alimentação.
Na manhã do dia 17 de maio ao olhar para ele se desesperou. Estava muito pálido, com a boca acinzentada, a língua muito branca. Perguntou novamente como ele estava e novamente ele respondeu que estava bem:
– Tu tá sentindo dor?
– Não só a minha barriga que está inchada.
– Quer tomar café?
– Tem nescau da Ariel?
– Tem.
– Então eu quero.
Correu feliz para atender o pedido, tinha certeza que com a alimentação a palidez ia desaparecer. Ele conseguiu comer bolachas salgadas com um copo grande de chocolate. Olhou para ele e decidiu leva-lo ao médico:
– Luciano a gente vai no médico.
– Eu já disse que estou bem, não te preocupa, eu vou ficar legal.
– Meu filho a gente não sabe o que tu tens, é melhor procurar saber o que é.
– Não, eu vou ficar bem, pra que gastar dinheiro?
– Tu vai comigo, nem que seja amarrado.
Lembrava dele se levantando da mesa e se segurando na ponta do móvel, parecia tão frágil, completamente diferente do homem que conhecia
– Eu to muito fraco vamos fazer assim, eu vou deitar um pouco e depois do almoço tu me leva, tá bom?
Sabia que precisava fazer alguma coisa. Correu para a casa da mãe. Sensata a mãe aconselhou:
– Diz pra ele ir contigo se não eu vou lá.
Depois as coisas foram acontecendo em uma sucessão desesperadora. Lembrava de ter deixado o carro na casa da mãe, do taxi para chegar na clinica, do encaminhamento para os exames. Depois novamente no Pronto Socorro. Dele ficando cada vez mais pálido, do médico dizendo que ia operar e das ultimas palavras trocadas enquanto ele estava deitado na maca.
– Como é que tu tá meu filho?
– To melhor, o médico disse que vai me operar.
– Eu sei, é melhor, assim ele descobre logo o que tu tens. Eu vou em casa tá bom?
– Tu vai demorar?
– Não.
– Promete? Tu sabe que eu odeio hospital, não demora eu não gosto de ficar só.
– Tá bom meu amor, eu prometo que é só o tempo de tomar um banho e voltar correndo pra cá. Quando tu acordar da anestesia eu vou estar do teu lado.
Lembrava de ter encontrado com o marido por volta das 15h30 e da urgência que tinha em ir em casa tomar banho e voltar correndo ao hospital. O telefonema da mãe dizendo que ele não tinha dado entrada no centro cirúrgico fez com que ela tivesse certeza de que ele estava morto. Voltou ao hospital e entrou devagar, tentando adiar o momento. Mandaram que subisse e procurasse o posto de enfermagem. Lá dentro o médico olhou pra ela e perguntou:
– Você é a tia do rapaz?
– Sou.
– Sinto muito informar mas ele entrou em óbito as 16h10.
O chão se abriu, ela sentiu flutuar. O pranto preso na garganta sufocava. A dor era tão grande que desejou morrer. Voltou para perto do marido:
– O Luciano morreu. Miguel, ele morreu, ele foi embora.
Olhou para o outro sobrinho pedindo perdão:
– Jonathan ele morreu. A gente saiu daqui e ele tava morrendo...
A porta da casa batendo fez com que voltasse a realidade. O filho acabara de chegar junto com a nora:
– Oi mãe, tá parindo outro conto?
Olhou para o ventre inchado da nora e desejou com todas as forças que reencarnação existisse, que Luciano estivesse voltando para que tivesse outra chance. A chance de tocar, abraçar, beijar e dizer de novo:
– Dodô eu te amo...
Olhou para a porta da casa e no meio do pranto pareceu escutar:
– Tá Ciara, depois ai...

Araciara Macedo


 
 
 

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