A CASA D' ÁGUA

      Uma casa d'água cheirando a gato preto e arco-íris misturado em burro quando foge.
      Coração desaguado é assim mesmo.
      Bate no passado.
      Fica sem referência de presente. Memória engana. Lembrança não.
      Nunca conta uma glória! Também nunca a teve.
      Em casa sempre ausente.
      Distraindo-se na demência, andando de lá pra cá...
      Sem se fixar.
      Sem função.
      Fumando sem parar, arrastando chinelo, dando pum e mijando no batente da porta. Jorrando sua própria água amarela escura. Fedida feito a de gato.
      Bebendo café pra mais amarelar os poucos dentes.
      Toda hora lavava a mão na parede. Casa d'água . Fartura de  líquido acumulado. Mãos tremem de artrose e Parkinson.
      Enxugava, depois, nas calças que já vivia pingada de urina . Camisa babada de cuspe e catarro amarelo. Braguilha aberta.
      E os pés voltavam a arrastar pela casa d'água, fazendo poças de lembranças pelo chão. Pisava devagar na lembrança da infância. Estalava água pra todo lado. Mãe batia com cabo de vassoura todo dia. A cabeça ficava moída de tanto cocuruto. À noite os homens chegavam. Cada dia um. Teve um marinheiro que lhe deu um anel de mar. Pingou no chão toda a água salgada. Ficou a tinta azul do oceano, marcada no taco de madeira por muitos anos. Anel de mar, cor de marinheiro. Esse nunca mais voltou. Se voltou, não lhe deu mais nada. Não lembrava. Só deve ter servido pra encher mais a casa de água.
     Sentou num caixote velho que tinha na sala. Ao pisar, olhou para o chão. Outra poça. Mais água. Essa da juventude. Homem bonito, mas estragado. Bêbado inveterado. Mulherada toda apanhava do jeitinho que a mãe batia nele. Cada lembrança que tinha de uma surra de menino, passava ela adiante, numas boas lambadas. Vingança? Quem se importava ?
   Os filhos dele corriam medrosos ao entardecer. Lá vinha ele pela rua, cambaleante, se escorando nos muros, trocando os pés, vomitando. Chutava o portão e caía no chão. Mais água. Era molhado com a mangueira d'água, até levantar e começar a xingar todo mundo. Ia pra cama se deitar. No chão, ficava uma poça de solidão. Não adiantava esfregar nem secar. Ela voltada.
   Levantava de novo e ia até a varanda suja da casa. Plantas esturricadas em latões de manteiga, cercadas por tocos de cigarros apagados. Até mijo escorrido tinha na pobre vegetação. Não sabia mais se era dele ou do cão magro, deitado com os olhos sempre virados de fome. Embaixo do cão tinha sempre uma poça. De lealdade.
   Na varanda sentia calor. O sol batia de frente. A luz espantava. Incomodado chutava o cachorro pra fora quando não pisava nele. Mais cigarro. Mais cuspe à distância. Caía perto. Já não tinha força, nem fôlego, mas fazia uma poça bem na frente da entrada. Era mais uma água na casa. Era a água da doença. Rançosa. Saliva de quem tem convulsão. Grossa.
   Voltava pra dentro e deitava na cama molhada. Por cima dela havia uma goteira por conta de umas telhas quebradas. A chuva caía exatamente na cabeceira. Molhava tudo. Ele deitava por cima. Mais água. Dava mofo depois de alguns dias. Ele nem ligava. Uma vez por semana o carro pipa passava e trazia água limpa. Dia de banho. Ele tomava, porém, a alvura da água o queimava. A sujeira descia pelo corpo e, no chão, formava-se outra poça. A poça da agonia. Quando saía do banheiro, a água no chão fervia. Bolhas vermelhas da cor do inferno. E a água não descia no ralo. Ficava ali mesmo pra sempre. Até outro banho chegar e substituir aquele anterior. Mais água na eterna casa d'água.
   Um dia a enchente chegou. Sentado no caixote da sala via a água escorrer pelos poucos vidros da única janela. Por baixo da porta, um rio parecia se esgotar, fazendo os raros móveis boiarem. De todas as torneiras, saía aquela água vermelha do término do banho.Vermelha. Do inferno. Agora já não havia mais poças d'águas. Era uma enxurrada que fazia pressão e corria de um lado para o outro. Era a sua paixão. Paixão. Paixão. Paixão. Pingando, brotando do nada, se descobrindo seca. Sem água. Parada como lama.
     A violência da demência o fazia mergulhar nas profundezas daquele mar que não conhecia o amor. Do mar, amor, do mar. Da cor do anel do marinheiro. Da cor dos olhos virados do cachorro. Da cor misturada do arco íris. Do burro que fugiu sem beber água.
     De poça em poça a casa d'água flutuou e levou seu dono para o meio de um mundo que conhecia apenas o pensamento seco, curto, único, certo. A vastidão do mundo sem mente era permanente, mas só se mostrava dentro do oco de uma casa d'água.
     Até o fim a agressão como defesa. A alienação.
     A solidão de mãos afogadas em mágoas
     Mais nada.

Cláudia Villela de Andrade


 
 

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