Alma

Alma costumava esconder as raras fotos que tinha dele entre as folhas de um caderno de anotações. No meio de uma lista de afazeres diários ela incluía um pensamento sobre o que ele poderia estar fazendo: beijando a namorada, tocando violão e checando a agenda do computador, se masturbando pela terceira vez naquele dia, dormindo ou xingando o que a vida lhe oferecia e que em nenhum momento era o que ele desejava. Ela sabia que ele era ambicioso e já havia dito isso a ele. Alma se viu num espelho naquele dia. A ambição a levou a muitas decisões impensadas nessa vida e era uma palavra difícil de engolir. Ambição vinha carregada de tanta culpa que só pra pronunciar a palavra ela precisava de uma coragem extrema.
Alma passava os dias imaginando como seria bom transar com ele de novo. Pensava nas palavras que ia dizer, no tom em que iria falar, os desejos que iria revelar e o gozo que ia ter (se ele a permitisse; se ela se permitisse). A ambição dele na cama não deixou espaço para que ela tivesse prazer na primeira vez. "É a idade", ela relembrava, pensando como um homem de vinte e cinco anos ainda pode ser um garoto. Um garoto querendo ser homem e ainda precisando de mãe. Ele mudou de posição na cama tantas vezes que ela perguntou se ele não comprava revistas pornográficas ou assistia a alguns vídeos de vez em quando. Ao olhar pras fotografias que os amigos lhe mostravam e nas quais ele aparecia, Alma sempre se sentia atraída pela imagem dele sorrindo, tocando ou apenas estando ali imprimido no papel. As outras pessoas eram apenas céus nublados, nuvens fora de foco. O centro da atenção era sempre aquele garoto que ela não compreendia. Aquele que não falava muito ou monologava. "O senhor dos silêncios e monólogos", como ela o chamou um dia. O mistério do silêncio era atraente e pairava entre os corpos. Às vezes a falta do som parecia ser falta de tesão, como num dia em que os corpos nus após muito se olharem, se aquietaram e fugiram um do outro. Era culpa? Parecia…
Ele era magro. E os ossos dos quadris ficavam imprimidos nas palmas das mãos dela. Suas pernas eram compridas e as costas mostravam como a adolescência não estava muito longe. Ela ficou impressionada com as manchas nas costas dele, mas não disse nada preocupada com o tempo que era pouco. Ela queria morrer de prazer, observar todos os olhares, trejeitos, a luz do sol batendo neles e sons que ela não conseguia ouvir. Desejava tanto escutar o som do corpo dele e a música que podiam criar juntos com o roçar das coxas e das línguas deslizando suavemente. E assim Alma seguia tentando imaginar o que não era dito nos raros encontros. Ela colecionou frases soltas sobre outros relacionamentos dele e adicionou todas as estórias em suas fantasias.
Um dia ela não soube voltar pra casa. Eles haviam conversado, jantaram juntos e ela o levou pra casa. Ela queria mais, mas não disse nada. Eles se despediram com um clima no ar e ela seguiu dirigindo. A mão no volante e a cabeça na imagem dele. A mente não se aquietava, o sangue corria acelerado e o carro ia a vinte por hora. Ela foi até onde podia e parou numa esquina qualquer. Conversou em voz alta consigo mesma tentando esclarecer os prós e contras de dar meia volta. Procurou um argumento irrefutável e as melhores palavras. Decorou uma frase. "Ligo? Não ligo." Ligou. Ele não atendeu. "O cel tá desligado". Alma deu meia volta e encontrou uma vaga em frente ao prédio. Saiu do carro ciente do desejo que lhe movia as pernas. Tentou discar o número no interfone duas vezes e errou no número.Quando finalmente acertou ele atendeu. "Eu voltei porque quero te dar um beijo, mas estou tentando respeitar os seus limites". "Eu também", ele disse. "Estou descendo". Ela sentiu um frio na barriga e achou que aqueles minutos tinham sido os mais longos dos últimos tempos. O que iria dizer? Como iria olhar pra ele? Quando ele abriu a porta ela queria pular no pescoço dele, mas se conteve. Ele parecia tentar encontrar um jeito e um lugar pra revelar sua atração. Ela recuou e tentou aceitar a situação emocional dele. Era de praxe colocar seus sentimentos de lado quando ele recuava. "Já sei. Vamos pra cobertura", ele disse. Abriu a porta como um cavalheiro e esperaram o elevador em silêncio. Quando entraram, ela se jogou do lado oposto ao dele e pôs as mãos nos bolsos da calça. Alma tinha um sorriso escancarado que não conseguia segurar. Ela subiu as escadas como se tivesse quinze anos e fez perguntas como toda adolescente curiosa faz. Só se deu conta do porque de estar ali quando o corpo dele ficou mais próximo. Ela o agarrou pelo suéter: "Por que você fugiu de mim?" "Porque eu não sabia se era certo", ele disse.
"Por que você não me disse?"
"Porque eu ainda não consigo falar", ele respondeu.
Alma não perguntou se naquele momento ele achava que o que faziam era certo. Mesmo porque nem lhe passou pela cabeça perguntar mais nada. O beijo e o aperto eram tudo que ela queria saciar. E de novo vieram os beijos curtos, as posições variadas como se procurassem um jeito de se sentirem à vontade. Alma sentou no colo dele e fez um comentário a respeito da lua cheia. Comentários nervosos de quem quer relaxar e não consegue. De quem procura uma desculpa pra estar certa. De quem carece de equilíbrio pra fazer sentido. No momento em que ela viu o rosto dele amassado na cadeira tentando achar uma posição confortável em cima dela, alguma coisa clicou na cabeça. Ela conheceu o desconfortável, mas empurrou a situação até onde o desejo lhe mandava. Ela sabia das incongruências, mas havia um coração batendo nos seios e no umbigo.
Eles passaram por cima dos seus limites e arranjaram trinta minutos de nudez no quarto dele. E quando, de novo, ele gozou ambiciosamente, ela se vestiu sem gozar e saiu sem culpa de não ter insistido. "Ele ainda não sabe", ela pensou. "Ele ainda não sabe dar, só receber."
Alma desceu as escadas, pegou o carro e voltou sorrindo pros braços do seu companheiro.

Kátia Moraes


 
 

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