O Pigmalião sem poesia
Não falarei de personagens míticos, de símbolos
gregos ou destilarei erudição barata comprada em livros luxuosos
ou idéias pomposas pescadas em livros velhos e que ninguém
mais lê. Afinal: quem é Pigmalião?! Esse escultor de
palavras que desnudam a minha alma, signos burilados por um autor sem rosto
e misterioso. Os mitos e seus personagens são artifícios,
muletas que nos mostram débeis e ao mesmo tempo engenhosos diante
de nossas limitações; os mitos seduzem, como me seduz o mito
de Pigmalião. Mas não vou dar voz a personagens esculpidos
por outros escultores que não podem mais ser desnudos, até
porque não existem mais, até porque nunca tiveram rosto,
quem criou esse Pigmalião que alimenta o meu imaginário agora?!
Vos falarei de um outro, que talvez seja até o mesmo, mas nesse
episódio, real, infinitamente real...Um escultor que vai além
de mitos engendrados em tempos imemoriais, por mim e por você não
vividos.
Falo de um tempo vivido por mim, o escultor que se desnuda. De um tempo
que também não me pertence em sua completude, mas estou nele
e ele em mim. Falo de um lugar, bem real, longe da Grécia e de mitos,
falo de Teresina, minha cidade natal, de um dia perdido em alguma noite,
ao lado de jovens cheios de vida e de uma total falta de poesia, o Pigmalião
que se desnuda, não habita arcádias, vai a um show, muito
provavelmente de forró. Em meio ao som de uma música que
simboliza uma torrente de imagens e valores que vão desde o caldo
cultural ao preconceito de quem não vive ou foi escaldado no jogo
de cadeiras do nordestino. Do ritmo sinto a energia telúrica, de
tribos e povos que se intercruzaram, uma combinação antropológica
de sons, gostos, cores e vozes. Vejo o índio que há em mim,
o silvícola que diante do mistério da vida engendra uma complexa
simbologia para acalmar seu espírito, ou a ritualística que
reproduzo em coisas como contos e narrativas de ficção. Desnudo
o negro que sou, o negro altivo e intelectualizado que tem consciência
de sua origem e de sua cultura, o negro sudanês. Ou ainda, do negro
alegre, o banto, adaptável, que por sua extrema inteligência,
se passa por pacífico, e sutilmente altera o sotaque da língua,
dando-lhe um colorido envolvente e cativante, como as cores que por vezes
invadem o meu imaginário. Estou nu, e sou branco como o português
que carrego no nome, no verbo, no discurso que lanço aqui. O português
que também sou me remete a uma realidade que também está
em mim, o desejo de correr o mundo, o espírito aventureiro, de conquistas,
de riquezas, um mundo que não seria globalizado sem o " Ó
salgado mar, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal".
Sou síntese, sou mestiço, sou brasileiro.
Da mistura de povos que encontro em mim, da força telúrica
que encontro em Teresina, com seu tempo escaldante, que me tempera, que
me sufoca...encontro os sons de uma noite perdida. A reencontro nesses
signos lançados ao ar da minha memória, ao calor das minhas
lembranças. Os signos do escultor desnudo que sou agora, que não
está fundamentado na cultura universal, mas na minha cultura, na
sua, que em sendo síntese e mestiço, se supõe norte
americano ou francês...se supõe menos universal do que realmente
é.
A noite reencontrada, o Pigmalião já não é mais grego
A noite foi aquela, sem graça, sem brilho, sem amor. Foi simplesmente
uma noite, aquela noite sem esperança, mas, quem sabe, de compreensão.
Foi em uma noite assim, que eu, o escultor desnudo, não roguei,
e fui a um prostíbulo vagabundo e de última categoria, algo
entre o ridículo e o surreal, ambos unidos pelo melancólico,
algo que enfim foi aquela noite.
O escultor não estava só, tinha alguns amigos, todos
da mesma família, todos melancólicos e sem poesia.
Procuro agora saber, por que fomos para lá...Por quê?!
Não importa. O que realmente importa?! A noite que vem em minha
mente agora descortina uma casa mal iluminada, daí a sensação
de melancolia naqueles olhares de fim de noite. Mulheres chinfrins e seminuas.
Ou será a minha imaginação de escultor desnudo, que
as faz assim agora? Em uma mesa, só bebi, e pouco. Do nada que bebi,
do nada que falei, só vi. Nada ali me foi agradável. Uma
puta, que vi menina, sentou-se no meu colo e fez malabarismo...creio que
em sua mente atordoada, não menos que a minha de escultor de palavras,
ela desejava me seduzir, ou algo que o valha. Não vi naquilo mais
que dó, dela, da menina que fora, da família que teve, e
desse mundo novo que ela criara para si mesma, mundo de droga e prostituição.
Ela, enfim, foi embora. Eu... só olhei.
Em prostíbulos decadentes há poesia?!
Deixemos essa indagação perecer com os valores dos prostíbulos.
Seres como prostitutas são símbolos de decadência
moral, de destruição, de desejos sujos e ao mesmo tempo,
elas atestam que não nos resolvemos muito bem com o prazer. É
a puta a moeda de troca da nossa libido?!
Por trás dos gestos vulgares, de olhares vazios, eu vi meninas.
Meninas que foram feitas de brinquedos, brinquedos do prazer alheio, dessa
sexualidade mal resolvida. Da boca de uma das meninas que vi, eu li sonhos...
chegou à mesa e decantou seus desejos em delírios hilariantes,
acompanhada da gargalhada zombeteira dos outros seres sem poesia.
Mas foi no olhar de um ser mórbido que encontrei consolo pro
meu olhar triste de uma noite perdida.
O escultor das terras áridas desencontra a Galatéia
Os signos daquele olhar verde, de uma loira triste e sem graça,
mas mesmo assim belo, me fizeram enternecer. Não amei, nem juntei
meu corpo ao dela, só me deixei comover com o sofrimento do seu
olhar desesperançado. Ela era jovem, bela, mas comovedoramente triste.
Poucas vezes vi um olhar tão destituído de glória,
apesar de ter belos olhos, mas era como se ela já não tivesse
mais esperanças. Eu li nos signos do seu olhar desencantado o que
não li no de outras mulheres, li que a vida pode e é perversa.
Que corpos valem o que podem dar, que mentes são subvertidas e submetidas
a forças maiores, como instituições, institucionalização
da miséria e da prostituição. Quem será mesmo
o prostituído ou a prostituída?! No mito de Pigmalião,
Galatéia é uma escultura, uma obra-prima que reproduz todas
as virtudes de uma mulher, algo que o escultor mítico não
encontrava nas mulheres de seu tempo. A menina de olhos tristes e desencantados
nada tinha de obra-prima, era bela sim, mas estava longe dos encantos da
escultura grega, era simplesmente uma puta. Uma puta triste. As mulheres
do tempo do escultor desnudo não são nem mais, nem menos
desencantadoras do que as de Pigmalião. A perfeição
não está nelas, mas também não está
na puta de olhos chorosos. O escultor desse drama atual já não
é mágico e muito menos atemporal como o histórico,
é só mais um a se desnudar, nem sequer encontrou nela a sua
amada, nem sequer nela encontrou encanto, muito menos calor e sexo. Só
constatou a pobreza do olhar, dela e meu.
Desse mito moderno, de mulheres desencantadas, de esculturas chorosas
em noites quase esquecidas, um escultor se desnuda, desnuda a armadura
poética, para talvez evidenciar a pobreza lírica de terras
áridas, para talvez reinventar mitos, compreender como homens e
mulheres se desnudam e mascaram, mesmo em lugares nada românticos,
como prostíbulos mortos, ou olhares melancólicos.