A CORAGEM

Faz frio lá fora. Às três horas. da tarde o termômetro aponta 4 graus abaixo de  zero. Nada comi até agora e tenho que sair para tomar o meu café da manhã. Tenho que escrever um conto. Ah, escrever um conto com o estômago vazio, sem nada para comer em casa e frio lá fora. Já é um bom começo. Pego o bloco, um livro de poemas de Álvares de Azevedo e vou comer alguma coisa em um Café perto daqui. Tenho uma idéia: tomo uma câmera imaginária e resolvo contar  tudo como num filme sem cortes, com takes longos como aqueles dos filmes de  Antonioni ou como aquela longa tomada do rebolado de Marilyn Monroe dentro de  um justíssimo vestido vermelho no filme ˜Niagra". Desço pela escada pintada de tinta cinza que liga o segundo andar ao térreo e me leva à entrada do edifício. Lá as pessoas entram tiritando de frio com seus pacotes coloridos  de compras nas mãos. Recebo uma carta de uma amiga e vou lendo pelo caminho: "...Você é ótimo nas frases. Tem o dom de sintetizar, de dizer muito em poucas  palavras. Há frases suas que dizem mais que um poema 'daquele tamanho'..."
Diabos!... Logo agora que estava com a intenção de escrever muito, com muitas palavras, leio essas coisas de sintetizar.
pensamentos! Foi como uma água  fria, ou como o vento frio que bateu na minha cara quando abri a porta do  edifício que dá
para rua. Outra água fria, ou vento frio, foi ver o sol  brilhante, sentir seu calor ao bater na minha face; ver as pessoas festivas
e  os enfeites natalinos nos portais das janelas. Afinal é fim de ano e as  pessoas celebram, mesmo estando em guerra. E
pensar que passei boa parte do dia lendo sobre como a CIA e o FBI, desde o tempo de Clinton, deixou escapar  muitas
oportunidades de evitar o ocorrido em 11 de setembro... divagando com  as divergências domésticas que Bush enfrenta na sua
guerra e o bla-bla-blá entre a Índia e o Paquistão que pode escalar para um conflito nuclear. Estava  preparado para escrever
um conto de guerra, nada de paz aos homens de boa  vontade, e justo vejo crianças correndo na rua com seus brinquedos
novos,  vejo casais se beijando em atos de amor, vejo um ou outro solitário no Starbucks Café se deleitando com o New
York Times de domingo, alongando seu  café da manhã. Bem, já é de tarde e muitas pessoas como eu vão tomar seus
desjejuns. Acho que isso é uma das coisas que me prende a Manhattan: cada um  faz o seu horário sem se importar com o
horário normal do mundo. Enquanto uns  dormem, outros trabalham. Uns almoçam enquanto outros jantam e assim a cidade
nunca dorme, não pára. "Quero acordar na cidade que nunca dorme...", chego até a pensar em cantarolar quando vejo
pessoas jantando — ou almoçando? — no Cottage. Vou até o Café do meu destino, tomo um lugar e peço meus ovos
benedict. A loirinha americana procura ser gentil com seus olhos azuis e seu  sorriso plastificado em série. Enquanto espero
meu café, adianto a leitura da  carta da amiga: ˜Se eu mergulhasse na sua [obra] com este propósito, acabava  louca (mais
ainda). Você me parece um enigma. Há momentos de tanta ternura  que me comove, há momentos que você me parece uma
criança desamparada, há  momentos em que você se mostra forte, cheio de garra, parecendo alguém  incapaz de sentir as
mazelas dos pobres mortais. E essa coragem de se expor  me espanta, pelo incomum dessa atitude. Coragem. Sim, coragem.
Essa é a  palavra chave: vou escrever um conto sobre a coragem. A coragem da guerra, a  coragem de ser forte, a coragem de
não ter medo, a coragem de estar com fome,  a coragem de enfrentar o frio, a coragem de celebrar um ano insano, as tantas
coragens de continuar vivendo apesar de todos os contratempos. A coragem de  escrever, de se desnudar, de se abrir, de se
dar aos muitos desconhecidos"...
Assim começo a delinear os tópicos do meu conto. A loirinha traz o café fumegando, os ovos cheirando. Salivo só de ver o
prato. Sem querer fito-lhe os olhos azuis e vejo que, apesar do sorriso estampado no rosto, ela está me xingando de filho da
puta. Também não era para menos. Eu com uma cara de intruso em sua terra num domingo à tarde tomando um café da
manhã tardio,  enquanto ela, jovem, dona da terra, está trabalhando, me servindo e ainda sendo obrigada a sorrir. Não dou
bola para sua frustração. Pego o livro que  trouxe e leio na contracapa: ˜Aos 10 anos já falava inglês, francês e latim.  Cursou a
faculdade de Direito em São Paulo, e teve praticamente toda a sua obra publicada após a sua morte" . Tomo uns goles do café
preto que me  estimulam a pensar como é bom saber se comunicar em diferentes línguas. Tomo a carta de novo e continuo
lendo: ˜Por exemplo: além de ser mulher em alguns  poemas, você se dá ao luxo de ser veado em outros... risos... Lembra do
primeiro email que lhe mandei perguntando se era homossexual? Eu li e pensei:  pá, legal, esse cara é bicha e assume!!!
gargalhadas... Aí vc explicou e eu  entendi. Mas será que isso está explicado para o grande público? Sei que vai  dar de
ombros e dizer que não se importa. Pois é aí justamente que vejo uma  grandeza rara, uma segurança que parece formar uma
couraça ao seu redor. Se  um dia alguém capacitado para tanto estudar toda a sua obra, talvez resolva as equações que nem
me atrevo a tentar resolver..." Um negro alto coloca uma  escada em frente da minha mesa e, subindo os degraus, vai se
explicando ao  dizer que tem que checar a calefação pois tem um casal reclamando que o  ambiente está muito frio. Fico
pensando se não faltou coragem ao então  presidente de não explicar seu relacionamento com a interna no Salão Oval e
acabar de uma só vez toda a especulação sobre suas aventuras sexuais na Casa  Branca, assim a CIA, o FBI, o Pentágono e
os Republicanos teriam mais tempo  para prever a segurança da maior potência do mundo; assim a manhã de 11 de  setembro
seria mais uma bela manhã ensolarada no gostoso verão nova-iorquino,  e não a que o mundo viu com todas a imagens que
mudaram face da História  levando a nossa inocência. Volto à carta e me pergunto por que as pessoas sempre se preocupam
com a sexualidade dos outros? É um assunto sempre instigante para muitos. Isso talvez vá levar o mundo a uma grande
guerra,  pode-se notar no que está se desdobrando aos nossos olhos impotentes. Se  deixassem Clinton em paz e não se
preocupassem com suas experiências orais,  muitos teriam feito seus trabalhos e os terroristas não ganhavam tanto terreno.
Vou lendo o resto da carta sem muito cuidado, enquanto vou acabando de comer meus ovos e de tomar mais uma xícara de
café sempre preto. Paro de  repente numa frase e vou pedindo a conta à impaciente garçonete: ˜Nisso é que  me confundo
toda. Não estou querendo te desvendar, não, mas gostaria de te  entender um pouco ao menos". A loirinha traz a conta e
dou-lhe uma boa  gorjeta. Na sua cara estampa mais um filho da puta subentendido atrás do  sorriso jovem. Imagino que ela
deveria estar pensando: "esse estrangeiro com  cara de árabe terrorista ainda me esnoba... e eu aqui me matando numa tarde
de domingo..." Pisco-lhe o olho e saio pela rua com a coragem renovada para enfrentar o frio. Vejo latinos se cumprimentando
ainda com seus ˜Feliz Navidad", turistas alemães e franceses perdidos na avenida, asiáticos displicentes no seu caminhar
apressado, negros no seu gingado rap e um tanto agressivo.
Volto para casa. Está quentinho aqui dentro e todos os medos e coragens ficaram lá fora. Visto a minha couraça de escritor,
chamo todos meus  personagens e resolvo escrever o meu conto.

Fernando Tanajura Menezes


 
 

« Voltar