— Este ano não faltou mesmo ninguém —. Parecia que estivesse falando comigo. Devia ter pouco mais que vinte anos e nem o bigodinho em cascata, sob o nariz regular, conseguia lhe fornecer mais que isso. — Tinha certeza que te encontraria aqui.
Eu estava surpreso de verdade e fixava com particular atenção aquele jovem desconhecido que estava a sorrir, na minha frente, de braços cruzados, escorando-se na cerca do imenso estande da Chevrolet. Mas aquele rosto não me parecia totalmente estranho.
— Sou Soraia —, veio em meu socorro. Mas eu senti um soco no estômago. Como, Soraia? Que coisa mais esquisita: um homem com nome de mulher? Sem dúvida, de boa aparência. Sou homem, mas sei reconhecer quem é bonito e quem não o é por nada. Estatura média, tipo esbelto mas atlético, cabelos aloirados, cortados à escova, olhos claros, bigodes não muito densos, mas bigodes verdadeiros, enfim... Quem será este brincalhão que quer tirar o sarro na minha cara? Penso na variedade infinita de nomes brasileiros usados indistintamente por homens e mulheres: Darci, Lenir, Dercy, Devani, Ivanir... Sim, mas “Soraia” lembra-me somente a lendária beleza da última imperatriz da Pérsia, além, é claro, dos milhões de mulheres que herdaram seu nome no mundo inteiro. Ah, certo... pessoalmente, aliás, intimamente... sim, é verdade, uma delas eu a conhecera...
— Sim, exatamente, sou eu — O galã havia acompanhado o curso de meus pensamentos nas rugas do meu rosto, até o ponto em que a dúvida desembocava na certeza mais absoluta.
Mas como “ele” podia ser justo “ela”?
Ao nosso redor. o zumbido festivo ia aumentando sempre mais, enquanto ia-se adensando a massa dos expositores e dos visitantes vindos para a feira anual dos automóveis antigos em São Paulo. Mas aquele vaivém de curiosos domingueiros não interferia minimamente na multidão de recordações que se amontoavam nos meandros duma memória nem tão remota assim, e desencadeavam um intenso fluxo de olhares, gratos e encabulados ao mesmo tempo, entre os meus olhos e aqueles do jovem na mia frente, ocupados em se reconhecer e se abraçar, em reentrar e se misturar, numa irrefreável evolução de detalhes de tantos e apaixonados momentos passados juntos.
Mas a Soraia que eu tinha conhecido era uma garota! Integral e radicalmente! E ainda, do tipo que merecia ser levada de passeio no meu Landau..
— Bem que imaginei o quanto você ficaria surpreso. Não é fácil explicar uma transformação desse tamanho. Mas eu sou a mesma pessoa. Ainda que não mais mulher.
Como mulher, de fato, tinha-a conhecido dois anos antes. Fazia-se notar, no meio do grupo de estudantes da Universidade, pela graça e serenidade do olhar, qualquer que fosse o interlocutor. E, também, pela preparação intelectual que demonstrava a todo momento.
Era originária do lado paraguaio de Bela Vista, a cidadezinha cortada ao meio por uma fronteira invisível entre o Brasil e o Paraguai. Falava perfeitamente o espanhol e o português, além do guarani, naturalmente, a verdadeira língua materna dos Paraguaios e do alemão, aprendido do pai austríaco. Eu estava livre, gostei e a convidei para dar uma voltinha no meu Landau.
Naqueles tempos eu era uma fera às soltas. Logo que pousava o olhar sobre uma frangainha, queria depená-la imediatamente. A primeira vez, não, mas, a segunda (e irrevogavelmente última) era fatal. Mas aquela era diferente. Era encantador escutá-la falar, horas a fio. Por isso, fiz uma exceção à minha regra e multipliquei o número de nossas saídas juntos. Satisfazia em cheio toda minha curiosidade e logo ela sentiu-se tão à vontade que quis revelar-me sua surpreendente biografia.
Sua família era abastada. O pai dela havia chegado no Paraguai quando jovem solteiro e havia casado com uma garota do povoado. Tinha enriquecido com a agricultura e a pecuária. Mas o apego aos princípios e às tradições de seus antepassados o haviam convencido, desde o nascimento da filha, que esta deveria se tornar monja.
— Monja?! No Paraguai?!
— Carmelita Descalça... Sabe, daquelas de Santa Teresa de Ávila. Reclusa. Aos treze anos eu estava já no convento em Assunção. Nem tinha idade suficiente para poder iniciar o noviciado. E assim, fiquei “postulante” por dois anos.
Monja reclusa. Carmelita Descalça. E eu que, um minuto antes, não apenas teria arrancado seus sapatos, mas a teria despido todinha, e agora estava aí, bebendo cada sua palavra, com aquele terror sagrado que de repente se empossava de mim: eu, ateu e libertino, diante daquela criatura angelical, que alumiava o interior de meu carro como um pequeno sol dentro de um quarto de cristal!
— Meu nome era Helga. “Soraia” eu mesma o escolhi para o dia em que teria podido me tornar uma verdadeira monja. Como qualquer adolescente, eu também tinha inventado várias alternativas ao nome de batizado. A madre abadessa ficou feliz. “Soraia” lhe lembrava uma freirinha vinda da Itália para passar uma temporada em nossa comunidade e que preferia continuar a ser chamada de “Suor Anna”, em Italiano, ao invés de “Hermana Ana”, que lhe soava particularmente cacofônico. Sor Ana, Sor Aia. E pronto.
Aquela simplicidade cativava-me. Nunca tinha tido uma paraguaia loira e esta era a síntese de toda uma gama de desejos conscientes e inconscientes, que perturbavam minha juventude. Da profundidade das experiências mais carnais às mais elevadas aspirações da espiritualidade.
— Às vezes, sinto uns impulsos tão descontrolados, com tal aniquilação diante de Deus, que não a consigo suportar. É como se a vida esmaecesse e me fizesse gritar e chamar a Deus com uma fúria irrefreável. E é a ansiedade que eu tenho de não viver e parecer viva, e não existe nenhuma solução, pués el remedio para ver a Diós es la muerte. Não são palavras minhas, mas de Santa Tereza. Mas eu experimentei também esse fervor que me levou a mergulhar na vida mística, enquanto progredia nos conhecimentos literários mais diferentes, Assim, puseram-me logo para verter pro guarani numerosas obras alemãs, francesas, espanholas, italianas e, ainda, latinas, gregas, e até sânscritas.
Não sei como consegui me conter tanto tempo sem pular encima dela e cubri-la de beijos e de carícias. E deixar-me arrebatar, por minha vez, por ondas de ternura e de paixão. Havia momentos em que ela se exaltava em maneira especial e o ímpeto vinha em mim, de tocá-la e beijá-la como se beija... uma santa. Ou uma criancinha. Bem... deixemos de lado a hipocrisia... como se beija uma mulher. Afinal das contas, ela era já mulher feita.
No décimo quinto passeio, não houve jeito. Enfeitiçada pela beleza e pelo mistério daquela natureza duma luminosidade e de certas cores incríveis, ela quis descer do Landau, bem no meio de uma clareira, e deitar na grama macia e fresquinha. Começou então a gritar pro céu sua felicidade, num turbilhão glossolálilo impressionante, Ronsard e Alberti, Shakespeare e Rilke, José Anchieta e Qoelet...
— Ángel de luz, ardiendo, ¡oh, ven!, e com tua espada incendeia os abismos, onde jaze o meu submerso anjo da escuridão. Lächelnder Engel, fühlende Figur, boca de tantas bocas: nunca o afã te aflige ainda que por um só momento, das horas que fugazes vão embora....
O auge da loucura o alcancei, eu também, quando ela começou a citar Umberto Eco, que cita o Cânticos dos Cânticos, acrescentando Catullo, Tibullo, Lorca, Prévert, e todo um exército de poetas mortos e vivos, pra mim, aliás, perfeitamente desconhecidos, que cantavam, em sua garganta, um hino dionisíaco ao amor e à vida.
— Eu sou uma flor do campo, um lírio dos vales... Como a macieira
entre as plantas
selvagens, assim o meu amado entre os jovens: à sua sombra anseio
sentar e o seu fruto que seja doce para o meu paladar. Introduzam-me na
adega do vinho e ponham-me bem às vistas os ramos do amor... Stat
rosa pristina nomine. A palavra está nua...
— Nua. Sim, nua, nua —, interpretava e gritava eu, sem saber mais o
que eu mesmo
estivesse fazendo.
Era o êxtase. Santa Tereza do Bernini e eu o cupido com o dardo na mão.
— Como és belo, meu amor! Como és encantador! Nosso leito é um leito verdejante, as vigas de nossa casa são de cedro, suas traves de cipreste. Oh, Deliciæ meæ. Beija-me com os beijos de tua boca!... Da mihi basia mille, deinde centum, dein mille altera, dein secunda centum... Meu bem-amado é para mim um saquitel de mirra, que repousa entre meus seios... Dein, cum milia multa fecerimus, Conturbabimus illa, ne sciamus aut nequis malus invidere possit...Os teus amores são mais deliciosos que o vinho e suave é a fragrância de teus perfumes!... Dans le ciel amoureux, dans le ciel de Séville, dans le ciel de Belleville et même de n’import où... Sua mão esquerda está sob minha cabeça e sua direita abraça-me... Tupã sy-eté, abá-pe ‘ara pora o-îkó nde Iiabé?...
Minhas mãos mexiam-se atarantadas num mar de sensualidade e eu não saberia exatamente dizer o que aconteceu a seguir.
— ...Demandez au vent, à la vague, à l'étoile, à l'oiseau, à l'horloge, à tout ce qui fuit, à tout ce qui gémit, à tout ce qui roule, à tout ce qui chante, à tout ce qui parle...
Já fazia anos que eu vinha, pontualmente, prà feira, junto
com meu Landau e era sempre um fim-de-semana inesquecível, onde
havia a chance de criar novas amizades ou de
reencontrar umas antigas. Era toda uma festa. Uma esplanada imensa
lotada de carros de todos os tipos e modelos, de todas as épocas
e de todas as cores, marcas e cilindragem, principalmente das fábricas
nacionais da Fiat, Chevrolet, Ford e Volkswagen, mas havia também
inúmeros Playmouth, Dodge, Mercury, Buick, Marquette, Le Sabre,
Skylark, Riviera, Cadillac, Eldorado, De Ville, Seville Elegantz, Camaro
Rally Sport, Chrysler Windsor, New Yorker, Essex, Mercedes, Meteor, Mustang,
Jaguar, Packard, Pontiac, Porsche, Studebaker, Volvo, Lincoln...
As passamos todas em revista durante horas, enquanto nos púnhamos reciprocamente em dia com nossas notícias.
— E porque decidiu sair do convento?
— Por causa do testículo.
— O que isso tem a ver?
— A testosterona. Desde que eu nasci, eu era um perfeito hermafrodita, com um ovário e um testículo inteiro, ainda que criptorquídico. O estrogênio prevaleceu por algum tempo. Doutro lado, você sabe, as diferenças entre os caracteres sexuais das crianças são pouco visíveis até a época da puberdade.
— Mas isso não seria um pretexto suficiente para jogar a batina às urtigas.
— Claro, mas numa certa hora percebi que a madre abadessa se me havia afeiçoado além da conta: talvez estava começando a me ver como uma substituta da freirinha italiana, e justo no período em que meus androgênios tomavam a dianteira e produziam umas cerdas que dificilmente teria podido dissimular debaixo do nariz, como ia fazendo com as das pernas e dos braços.
— E então?
— E então, foi quando aconteceu a maior tragédia da minha vida: meus pais morreram num acidente de carro, junto com meu irmãozinho e fiquei sozinha no mundo. Podia ficar quieta no convento, mas percebi que se tornaria sempre mais difícil pra mim, continuar a segurar as mãos ainda por muito tempo, entre tantas irmãs jovens e puras e decidi ir embora. Era o período em que conheci você. Não tem idéia do esforço que tive que fazer para esconder a confusão que vinha se estruturando na minha cabeça, enquanto, como mulher ou como homem, não sei, me apaixonava perdidamente por você.
— E foi por isso que você fugiu de mim? — acrescentei em tom de suave repreensão. — E agora, como você está se virando?
— Abri uma empresa própria com parte da herança de meus pais e exploro as habilidades lingüísticas adquiridas no convento, no meu escritório de tradutor juramentado.
— Mas isso não dá de comer pra ninguém, nem na Europa.
— É verdade. Mas eu ganhei um concurso do Ministério da Cultura e fui inserido num grande projeto de recuperação do Tupi antigo, a língua falada pelos índios da época da chegada dos Portugueses, hoje uma língua morta. Com a proximidade do quinto centenário da descoberta do Brasil, está se despertando um interesse sempre mais entusiasta pelas suas origens históricas e culturais. Aliás, está acontecendo até um forte movimento nacionalista que sonha em torná-lo língua oficial, ensinando-o em todas as escolas, no lugar do Português. Para evitar confusões, apresentei-me como Inocêncio, o que você acha? Sugestivo, não? – Continuava a sorrir, daquele jeito “inocente” e maroto, ao mesmo tempo, que tanto me havia aceso no passado.
Eu permanecia aniquilado, diante daquela personalidade titânica, tão capaz de administrar uma multidão de personagens, de nomes, de línguas, de literaturas, de sentimentos e... de sexos, com a serenidade e a clarividência de um velho profeta.
— Lembra ainda do Landau? — Um sentido de perda e de descoberta, ao mesmo tempo, inundava-me de alegria e de saudades.
— Claro che me lembro e o vejo ainda com prazer. Aliás, foi a pista que segui, na certeza de encontrar você. Queria lhe fazer uma surpresa.
— Mais surpresas ainda? Quase me mata do coração, com tantas novidades de uma só vez.
— Tive um filho —. Outro soco no estômago. Tentei, entretanto,
me recuperar
imediatamente.
— Ah, então você casou? — Percebi o fora que havia dado, no mesmo instante. — Isto é, queria dizer, quem é a mãe afortunada? — gaguejei, confuso.
— Eu. Sou uma mãe-solteira, ou um pai-solteiro, se o preferir. — Eu continuava a engolir em seco. — Logo após o parto, tirei o ovário, a trompa e o útero. Um tratamento a base de androgênios reforçou meus caracteres masculinos e ei-nos aqui.
Uma babá, no entanto, nos alcançara, empurrando um carrinho, onde estava brincando um bebé, com a olímpica imperturbabilidade de quem tem a consciência do dever cumprido.
— Quem é o pai?
— Olhe-o com atenção...
Olhei com atenção o gurizinho e vi a mim mesmo em miniatura, ocupado em lamber com sofreguidão um belíssimo modelinho azul de Ford Galaxie-Landau 1982, com a única língua à sua disposição, no momento.
Foi então que comecei a acreditar em Deus.
Giuseppe Butera