Miguel

Que cabeça a do Miguel!
Que extraordinária capacidade para se meter com quem não “prestava”!
Querer ajudar quem não precisava, quem achava que não precisava; quem, simplesmente, não queria ajuda.
Querer compreender quem não compreendia sequer a si própria.
Ter esperança e acreditar que tudo podia mudar; que noutro dia tudo seria diferente.
Acreditar em quem não acreditava em si mesma. Uma verdadeira profissão de fé.
Tarefa para os santos, para os iluminados; apenas para os mais evoluídos.
E como ele estava perto deles...
Era isso! Miguel era quase um santo!
Pietra era doente do espírito; pessoa imersa em graves problemas emocionais, em constante crise comportametal;  patente e constante processo de autodestruição a longo prazo.
Explico : Dizem que tratamos sempre os outros como tratamos a nós mesmos. Se nos respeitamos, temos pelos outros respeito. Se nos amamos, temos amor ao próximo. Se somos levianos e mentirosos com nosso íntimo, é isso o que norteará nossa conduta no mundo.
Pietra era destas pessoas... Até hoje não se sabe se realmente louca ou, simplesmente, mais uma destas  pessoas “à toa ”, que se encontra em qualquer esquina, ou como fala a canção: uma “dessas mulheres que só dizem sim”; e que apenas se fazia de louca para aprontar das suas, com Miguel e com todos os homens que lhe atravessaram  o caminho.
Bonita, jovem, inteligente; não teve uma infância feliz.
Abandonada muito nova com parentes.
Acho que isto, principalmente o desprezo materno e a  falta do pai, fizeram sua “doença” progredir cada vez mais rapidamente.
Miguel se preocupava com ela. E como se preocupava...
— “ Deixa de ser trouxa, Miguel! Larga dessa mulher que ela não vale um maço de cigarros !”  — dizia a unanimidade dos amigos.
Miguel era obstinado, fazia que não escutava, sorria sem graça.
Em casa, chorava.
Pietra saiu do interior, aonde viviam, deixou Miguel,  foi para a cidade grande.
Pobre Miguel.
Sozinho, logo soube que ela arrumou um emprego, soube também , o que já não era novidade, tinha amantes. Amantes não, “amigos”, como ela mesma gostava de chamá-los.
As vezes ela reaparecia, sempre para separar Miguel de uma eventual nova companheira — dizem que fazia de propósito —.
Eles se encontravam. Miguel ficava radiante.
Esquecia dos amantes, das brigas, das humilhações, da zombaria dos colegas, dos conselhos. Esquecia da vida, nos braços daquela mulher.
O mundo para Miguel era Pietra, pelo menos até que ela, como invariavelmente fazia, inventasse uma desculpa, um chilique, um motivo qualquer para discutir, para brigar, para ir embora.
E, novamente, estava ele lá:
Só; abandonado; humilhado...
Parecia, a vista dos outros, que ele até gostava !
Mas não. Miguel nunca gostou.
Um dia Pietra engravidou.
De quem era o filho?
Alvoroço.
De tantos que por ali “ passaram”, de quem seria o rebento?
Pietra, sempre prática, resolveu rápido o “problema”. Sem nove horas, sem riscos, sem traumas.
— “Vou tirar... vai estragar meu corpo... não quero engordar...”
Miguel morreu por dentro, mais uma vez.
E se o filho fosse mesmo dele ? Mas não tinha jeito, Pietra era decidida:
Abortou o “engordativo” feto; livrou-se, preventivamente, dos “quilinhos a mais”.
Além do mais  isso atrapalharia sua liberdade, o emprego, os “amigos”.
— “Uma vida não vale tanto sacrifício”, pensou aliviada após a rápida intervenção que mandou mais um anjinho para o céu.
Mas a vida passa, e quanto mais se vive mais depressa ela vai...
E a dela foi...
Pietra adoeceu:
Os “amigos” se foram, e junto com eles o emprego, a juventude, os cabelos, o corpo.
Ah... o corpo...
O sorriso branco, de dentes perfeitos, tornou-se um amontoado de cacos; o perfume enebriante, mofo.
Só restou Miguel.
Agora, enfim, ele a tinha só para si.
Afinal valera a pena aguardar uma vida toda para tê-la !
Miguel vestia Pietra, as vezes iam a missa juntos, ela já não podia andar muito bem.
Mas outra doença, a do espírito, avançava também, e avançava a passos largos.
Pietra agora era um doce, quando não surtava era tranqüila; conversavam, até namoravam !
Mas cada vez mais Miguel via o fantasma da demência, da loucura, rondar Pietra.
E ele, coitado, fazia só o que podia fazer, e entre um e outro ataques, que eram cada vez mais freqüentes, e aonde Pietra o chamava de todos os nomes e atribuía a ele a culpa por sua desgraça, o  pobre Miguel chorava.
As vezes rezava, pedia, em vão, para que Deus iluminasse sua amada e que se já não mais  pudesse lhe devolver a beleza primaveril de outrora, que a ela própria, mas não a ele, tanto fazia falta, que desse a ela ao menos paz; se não luz, ao menos uma penumbra de razão, um conforto.
Deus foi piedoso.
Pietra morreu.
Naquele dia chovia muito.
Os “amigos” não compareceram aos funerais, a família, nunca existiu; o filho, ficou na cestinha de lixo do consultório do ginecologista.
Só estava ele ali.
Miguel: a família, o pai, a mãe, o irmão, o filho, o amigo, o amante, o enfermeiro.
O anjo.
Quando o caixão simples foi sendo introduzido na gaveta, Miguel pediu um minuto.
Olhou por uma última vez o rosto branco, os olhos fechados, a fisionomia serena.
Surpreendeu-se com uma estranha expressão de tranqüilidade que dele brotava.
Miguel sorriu.
Agora ela estava em paz.

Alejandro da Costa Carriles


 
 

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