Ela não entendia porque ele dormia de relógio. Ia olhar
a hora quando estivesse sonhando? Ela também não entendia
porque ele tinha aqueles pesadelos. Era porque ela ficava perguntando porque
ele não tirava o relógio antes de dormir? Mas fora disso
eles se entendiam bem. Gostavam de assistir a filmes juntos enquanto comiam
pipoca. Era como se estivessem no colo de suas mães. Seguros. A
vida não parecia ter problemas nessas horas. O dinheiro no banco
não parecia diminuir a cada
mês nessas horas.
O telefone tocou `as onze e quinze da noite e ela já sabia que
era a Pretinha.
"Uma saudade da Bahia, minha nêga", ela sempre dizia tarde da
noite no ouvido da Carola. E a Carola aproveitava pra falar de Manaus e
do colégio interno, das irmãs e da sua adolescência.
Pretinha não entendia muito bem o que é que a Bahia tinha
a ver com o colégio de freiras em Manaus, mas nunca quis importunar
a amiga já que ela era a única pessoa que ouvia as suas lamúrias
diárias sobre a vida difícil na cidade grande. Carola também
não sabia porque ela sempre se lembrava de Manaus.
Aliás, ela não entendia porque andava se lembrando de
tanta coisa do passado. Talvez fosse porque Jacinto estivesse sonhando
todo dia e ela no fundo também quisesse estar sonhando com alguma
coisa. Os filmes com pipoca nos sábados `a noite já não
eram tão interessantes assim.
Foi durante uma dessas conversas com Pretinha que Carola, esparramada
na cadeira da sala de jantar, percebeu seu reflexo no candelabro. Pretinha
falava tão rápido que era fácil acabar num devaneio
sem fim enquanto ela monologava no telefone. Além disso Carola sempre
aproveitava pra comer uma maçã aquela hora e a mastigação
fazia com que ela perdesse algumas frases da Pretinha. A imagem do rosto
pequeno e distorcido de Carola no candelabro dourado fez ela lembrar do
altar da escola e da menstruação que costumava lhe matar
de dores todo mês. A mãe lhe servia chá de camomila
e algumas bolachas quando ela se acalmava da luta com a dor. Ela se lembra
que um dia estava quase desmaiando no ônibus de volta pra casa vindo
da escola. Se aquilo era virar mulher, melhor ser criança o resto
da vida. E quando Carola transou pela primeira vez ela repetiu a frase
de novo. Era melhor passar a vida comendo pipoca e assistindo filme. "Ah,
as coisas boas da vida", ela pensava.
"Carola?"
"Tô aqui Pretinha", ela respondeu calmamente. Carola tinha o
poder de viajar nos seus devaneios e ainda prestar atenção
nas palavras de Pretinha. Era um dom. Nem ela sabia como conseguia fazer
isso.
Lá pelas onze e quarenta e cinco da noite a conversa acabou
e as duas desligaram o telefone. Foi aí que Carola notou um barulho
estranho. Um balbuciar, depois umas risadas estranhas. Primeiro ela pensou
que fosse o vizinho novo do apartamento ao lado, depois que estava escutando
vozes do passado, mas ao chegar a porta do quarto percebeu que Jacinto
estava sonhando. A novidade dessa vez é que ele estava sentado na
cama. Quando Carola chegou mais perto ele começou a cantar uma canção
italiana que ela costumava ouvir quando era garota. No meio da cantoria
Jacinto parou e começou a xingar. Falou palavras que Carola nunca
tinha ouvido ele dizer, disse sacanagens que ela nunca imaginou que ele
pudesse falar. Carola pensou que era melhor acordá-lo, mas hesitou
quando percebeu que Jacinto voltou a se deitar e abraçou o travesseiro
dela. Carola ficou ali parada de boca aberta e com um ponto de interrogação
na cabeça. Depois olhou pro relógio, apagou a luz e foi pro
seu lado da cama.
"Eu devia ter gravado", ela pensou. Lembrou do gravadorzinho do seu
filho Paulo que estava estudando Jornalismo e foi pé ante pé
pegar o aparelho no quarto dele. Quando voltou Jacinto estava deitado no
lado dela e parecia discutir com alguém. Dessa vez Carola respirou
fundo, apertou os botões e colocou o gravador na mesa de cabeceira
dela.
No dia seguinte Carola não teve coragem de falar pro Jacinto
o que ela tinha ouvido. Ela decidiu comprar um gravador que nem o do filho
e tirou a câmera de vídeo do armário do quarto dos
fundos.
Os sonhos passaram a acontecer diariamente. Sempre após os telefonemas
da Pretinha. `As vezes ela apagava a luz e dormia por algumas horas e acordava
com Jacinto empolgado como se estivesse cavalgando um cavalo. Ela saía
da cama, pegava o vídeo e filmava tudo que ele dizia e todos os
seus gestos. Durante duas semanas Jacinto ficou sonhando animadamente.
Cantava, corria, gritava, transava, discutia com os feirantes e tinha
conversas com os políticos da época. Carola perdeu o gosto
pela sessão de filme todos os sábados e parou de comprar
pipoca no supermercado. Jacinto notou que Carola agora ia mais cedo pra
cama com ele e que tinha parado de esperar pelos telefonemas de Pretinha
toda noite às onze e quinze. Ele gostou de ver que ela lhe fazia
companhia na hora de dormir e passou a segurar a mão dela e a abraçar
Carola carinhosamente toda noite.
Foi aí que os sonhos pararam.
Foi aí que Carola se apaixonou por Jacinto novamente.
Kátia Moraes