Bolhas

      Resolveu saltitar pelos azulados campos do mundo em que vivia. Observou à sua volta, notou que não havia ninguém, gostava daquela situação. Era inexistente a presença de qualquer ser, qualquer julgamento, por isso se sentia apto a adquirir a forma que quisesse. Sentia-se livre para fazer o que desejasse.

            Cresceu assustadoramente e passou a possuir uma coloração esverdeada. “Como estou feio...”, pensou. Na verdade, não estava feio. Estava diferente da forma corporal a que se habituara. Mas feio, feio não. Nem havia ninguém lá para estipular conceitos de beleza. Pensou nisso tudo. “Não estou feio, nem bonito!”.

            Prosseguiu com seus saltos, deixando para trás, a cada segundo, alguns metros quadrados de grama azul. Abaixou-se, buscando pegar algum impulso forçou seus pés contra o solo. Assim saltou. Então resolveu voar um pouco. A coloração verde do corpo confundia-se com o céu, limpo naquele dia. Esboçou algumas coreografias no ar, que pareceram mal-executadas a quem o observava. Mas como ninguém o observava, talvez as coreografias tivessem sido boas. Afinal, era ele quem conceituava os valores de um bom coreógrafo.

            Parou no ar, como um beija-flor sem asas, sem bico e sem penas. Avistou um vulto. Era alguém. Alguém que se aproximava. Quem era? Quem era?, enquanto estas perguntas insistiam em povoar seus pensamentos, chocou-se bruscamente contra o chão. Tentou voar de novo, mas não foi capaz. O vulto foi se aproximando e adquirindo formas mais nítidas. “Não parece ser ninguém que eu conheço”.

            Realmente, não era ninguém que conhecia. Era uma pessoa com quem nunca trombara. Então trombaram. Ele, todo verde, seguiu saltitando e sentiu-se feio. “Caramba, esse ex-vulto aí deve ter me achado muito feio! Ah, deixa pra lá, acho que não vou mais trombar com ele mesmo...”.

            Cronologicamente, até aqui aconteceu o seguinte: saltos, vôo, vulto, chão, saltos, ex-vulto, vulto. Então, depois que o ex-vulto virou vulto novamente, foi desaparecendo. Quando o vulto imergiu no cenário, ele se sentiu apto a voar. E voou.

            Jogava seu corpo para todos os lados. Tentava abranger o maior espaço aéreo possível. Não conseguiu porque seu corpo era em demasia pequeno, comparado ao céu. Resolveu. Espreguiçou-se e foi crescendo, crescendo, crescendo... Já bastante grande, viu algo inesperado: uma garota linda, que já conhecia havia algum tempo. Adorava aquela menina, apesar de ter a certeza de que ela não se esforçava para demonstrar reciprocidade.

            Foi imediato: ele a viu, tombou no chão e diminuiu. Ficou mirradinho, tombado, e perguntou: “Você me viu grandão?”. “Não, só vi seu tombo no chão”, seca, assim a garota respondeu.

              Concentrou-se no intuito de crescer como antes. Mas não conseguiu. Era como se houvesse um campo de força, uma bolha intransponível que o impedia de crescer e fazer brotar nela o sentimento de admiração por ele. Aí a menininha saiu correndo e deixou-o sozinho com o mundo. Quase instintivamente, cresceu. Tornou-se o gigante que queria ter se tornado minutos atrás.

            Preferiu não refletir sobre aquilo. Só aproveitar aquele momento de expansão. Começou a se dedicar ao intelecto... Na cabeça, montou diversas equações matemáticas do maior tamanho e da maior dificuldade. Foi resolvendo, maquinando sozinho todos aqueles números, sem medo de errar nem de acertar. Recitou em voz alta um poema recém-elaborado por ele mesmo. Recordou-se de fatos históricos, noções geográficas, reações químicas e todas essas coisas meio inúteis, mas que, até naquele mundo, eram consideradas da maior importância. Atravessou, de repente, seus pensamentos o som de passos.

            Girou a cabeça a fim de encontrar alguém. E o fez! Estava passeando por aquele local um tio dele que fazia uns tempos que não encontrava. Da última vez que se viram, a conversa resumiu-se a um monólogo em que seu tio falava e ele ouvia respeitosamente.

            Seu corpo verde ficou amarelo, cor que havia aprendido a associar a “submissão”. Seu tio, com uma voz imponente, começou um discurso aparentemente convincente, porém de conteúdo questionável. Com o peito estufado e gestos firmes, dizia que “A partir do século XII, o fato de dois mais dois serem quatro era devido à baixa produtividade do setor primário da economia agropecuária”, entre outras coisas.

            Amarelo, sabia dos absurdos que provinham da boca de seu tio, mas sentia-se impossibilitado de corrigi-lo. Ainda por cima, fazia cara de quem estava aprendendo! “Estou me sentindo envolto por aquela bolha outra vez. Quero falar! Quero ensinar!”. O tio foi embora, ele esverdeou-se e começou a discursar seus pontos de vista sozinho.

            “Quero me libertar para sempre! Por que cada pessoa me condiciona a agir de uma forma diferente? Por que eu consigo ser tão livre sozinho?” Pensava nisso enquanto, verde, voava. E lá do céu observou um grande vulto que cobria toda a extremidade do horizonte. Girou sobre seu próprio eixo e viu que o vulto era redondo e estava se aproximando.

            Quanto mais o vulto redondo se clareava, mas ficava evidenciado que o vulto era constituído por vários outros vultos redondos. Percebeu! O grande vulto era formado por todas as pessoas que conhecia, que já tinham uma opinião formada a seu respeito.

            As pessoas o cercaram! Sentiu-se completamente incapaz de qualquer ato. Ficou branco, de pálido, de mistura de todas as cores, de mistura de todas as expectativas provenientes de cada uma daquelas pessoas a seu respeito. Estava completamente espremido por uma bolha, que o deixou paralisado. Concentrou-se na idéia de que precisava ficar verde. Esse era o momento! Queria se libertar perante o mundo, viver livre para sempre!

            A bolha de tão vazia comparada à densidade de julgamentos que tinha o ambiente naquele momento, começou a flutuar. Ele estava, novamente, voando. Ficou feliz por ter conseguido se safar daquela situação. Bem lá no alto, não conseguia mais avistar ninguém. Sozinho, ficou verde e cresceu. Cresceu tanto que estourou a bolha!

            Grande e livre, caiu! E bem no meio da roda de pessoas. Caiu lá, lá ficou e lá ficará eternamente. Todos puderam observar aquele ser como nunca haviam visto: grande, com um largo sorriso no rosto, verde e sacrificado.

            O povo considerou que ele foi sacrificado pela liberdade.

            Ele, certamente, se pudesse responder, diria que havia sido sacrificado gradativamente por bolhas...

Bruno Bracco


 
 

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