ENTREVISTA COM JAMES JOYCE

Sentamos num banco sob as tílias, no Hyde Park. James apontou para aquela área onde só existe grama e perguntou se eu sabia por quê. Ele mesmo respondeu:
"O rei Eduardo II com sua mulher e uma bela dama da corte passeavam por aqui, no tempo em que era um florijardínico espaço. Vai que o rei se abaixa, colhe uma flor e a entrega à dama. A rainha dona Isabel de França, ao chegar furiosa a Buckingham, ordenou que todos os canteiros fossem arrasados e que nunca mais se plantassem flores aqui. Os ingleses são tão obedientes, que até hoje é assim."
"Você não se acredita britânico, não é?"
"Claro que não. Gosto de Londres, é melhor que Botsuana, mas nascer em Dublin é uma praga de que ninguém se livra. E nascer filho de John Stanislaus Joyce é uma praga ainda maior."
"Nisso há algo do adulto quando se confronta com o pai?" - perguntei.
"Deve ter. Quando escrevi 'A Portrait', eu mergulhei de volta em meu prórpio passado, para justificá-lo e para revelá-lo. Como eu disse uma vez a meu irmão Stanislaus, o motivo do livro é que somos o que fomos."
"James, você sempre foi gozador com Stanislaus. Uma coisa impiedosa que você disse pra ele, entre muitas outras, foi naquela vez em que você voltou a Trieste com sua noiva Nora, e contou a recepção brilhante que seus amigos lhe deram em Dublin. Stan, que tinha ficado em Trieste a contragosto, louco de vontade de ter ido também a Dublin, quis saber, timidamente: 'Ninguém lá perguntou por mim?' e você respondeu: 'Oh, sim, todo mundo. Mandaram um monte de recados para você, mas eu esqueci todos." "Ele estava acostumado a ser espezinhado assim."
"Além disso, James, você era cara-de-pau. Deixava que Stan arcasse com as despesas de sustentar todos vocês na casa dele. Foi ele quem pagou a viagem de volta."
"Em Trieste em fiquei devendo a todo mundo, você sabe. Fui até ameaçado de despejo por não pagar o aluguel."
"Você foi um grande caloteiro, Jimmie, geralmente porque estava sempre sem nenhum. Mas desperdiçou chances de ganhar dinheiro em
Trieste. Ettore Schimitz o apresentou ao rico advogado Paolo Cuzzi, que se tornou seu aluno de inglês. Você ficou dando aulas a ele e à irmã, na casa dos Cuzzi, e ainda arranjaram mais duas alunas, também de catorze anos. A turma prometia crescer, mas suas aulas se tornaram bagunçadas, o que desagradou à Sra. Cuzzi" - lembrei.
"É verdade" - confirmou James. - "Eu cantava canções irlandesas ao piano e as meninas faziam coro. E na saída, eu descia a escada escorregando pelo corrimão, com as garotas logo atrás, em grande algazarra. Quando a sra. Cuzzi viu aquilo, as aulas foram bruscamente interrompidas."
A tarde ameaçava cair no Hyde Park. James disse que devíamos ir até o Selfridges, comer umas ostras vivas deliciosas com champanhe, mas só iria se eu pagasse. Já estava quase na hora do chá, de modo que saímos passeando até a Oxford Street. James não parava de olhar para as londrinas de saias curtas e meias finas de seda. Isso sem falar nas belas indianas, e afro-britânicas, e latino-americanas.
"Minha linda jovem", ele falou para a garçonete de cabelos escuros, enquanto ela abria ostras com elegantes luvas de borracha. - "Você me lembra Nora quando moça, só que não é brancarrona como eu pensava que fossem todas as inglesas."
À sexta flute de champanhe tive de carregá-lo para fora. No caminho, ele pôs-se a lembrar uma antiga aluna com quem tinha sonhado uma intimidade maior, em Trieste. E recitou um texto que tinha escrito para essa moça, talvez chamada Amalia Popper: "Ela ergue os braços num esforço de enganchar na nuca um traje de veludo negro. Ela não consegue, não, não consegue. recua em minha direção, muda. Vejo através do véu negro o seu corpinho."
Antes que James resolvesse dormir, pois tínhamos chegado na porta do hotel, eu perguntei:
"Quando você conheceu Ettore Schimitz em Trieste, ele era um escritor obscuro, e foram as suas boas palavras e de Eugenio Montale, durante dois anos, que despertaram a atenção da crítica para ele. Foi assim que Ettore, ou Ítalo Svevo, o pseudônimo que adotou, passou a ser reconhecido como o primeiro grande romancista italiano do século XX. O que tem a dizer sobre isso?"
"Nada" - ele respondeu. - "Pergunte ao Montale."
"Jimmie, eu vou publicar esta entrevista num site da internet, lido por pessoas importantes e exigentes. Elas esperam uma declaração sua, genial e única. Diga algo assim."
Ele clareou a garganta e declamou:
"Que choques cá de querências contra carências, ostragodos versus piscigodos!. Brékkek Kékkek Kékkek! Koax Koax Koax! Ualu Ualu! Quahouuh! Quahouuh! Onde bandos de botocudos inda avançam para arrasarmassacrar linguarudos e verduns catapultarremessam contra kanibalisticos para fora da irlandavosboycia de Montecaveira. Brasiguaios e paragualeiros. Sangue de Chresto cruz iscroto! Sanglorencianos, salve! Armas apelam com larmas, alarmam. Psiu-psiu:pum-pum. Queaconchegos no lance, castelos no ar que o vento levou! Que protestutas sexduzidas por papa-missas!"
"Genial, Jimmie. Amanhã vamos comer mais ostras com champanhe - e brincar com a garçonete, certo?"

Fernando Borba

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[O texto final de James Joyce foi extraído de 'Finnegans Wake' ('Finnicius Revém'), tradução de Donaldo Schüler.]


 
 

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