Saiu do fliperama e foi a praça. O odor ácido de cola de
sapateiro entrou pelas narinas de José, o menino de rua. Cobriu
a mão direita com um saco plástico e pegou a cola do fundo
do pote metálico. Virou o saco, pondo-o em forma de balão
e começou a inspirar e expirar, inspirar e expirar.
A tontura dominou-o. Via a praça distorcida e percebeu-se mole sobre
o banco de concreto. Gostou daquilo. Olhava para as lâmpadas
e o reflexo da luz nas árvores e no chão. Balançava-se
sobre o banco, como se fosse um João bobo. E riu. Riu sem parar
e continuava a inspirar e expirar.
Uma dor de cabeça fina instalou-se em sua cabeça. Tornou-se
parte da praça distorcida, das lâmpadas, dos risos e do balanço
em estilo João bobo. Tudo aquilo era harmonia. Passou a ter uma
dor funda na barriga vazia e sentiu seus pulmões como que repletos
de areia.
Tudo aquilo ainda estava em harmonia: a praça distorcida, as lâmpadas,
os risos, o balanço em estilo João bobo, a dor funda na barriga
vazia e os pulmões repletos de areia. Vieram-lhe idéias.
Parou de rir, concentrou-se em apenas inspirar e expirar o vapor de cola.
Imaginou que controlava um homem-robô, com cinco metros de altura.
Ele, José, estava no painel de controle, na cabeça. Tudo
parecia a um jogo de fliperama. A cada manipulada nos botões, movimentava
o robô, que tinha raios nos olhos mãos e, com suas passadas,
fazia tremer o chão.
Dirigiu-se a praça. Seus amigos, meninos de rua, estavam engraxando
sapatos. Todos fugiram, menos os meninos, amigos de José. Disse-lhes:
“amigos, venham”. Todos seguiram-no. José levou-os a uma mansão,
igual a que havia-lhe negado pão à tarde, enquanto estava
lúcido.
Afugentou seus habitantes e pôs todos os meninos de rua dentro daquela
imensidão. O robô e José ficaram vigiando a porta de
entrada. Ninguém aproximou-se: nem o exército, nem a polícia.
Estavam com medo. José formou um fosso em volta da mansão,
com os raios que saiam das mãos e olhos do robô.
Avisou à todos: “Meu robô matará todos que se aproximarem”.
Os guardas amedrontarem-se. Ligou o robô no automático. Desceu
do gigante eletrônico e foi juntar-se a seus amigos, que estavam
na mesa da sala, jantando peru assado e carne de porco. Sentou-se e comeu
uma perna do peru.
O delírio acabou. Sentiu a dor de cabeça, o vazio no estômago,
os pulmões repletos de areia, mas não balançava mais
como João bobo, nem ria, nem via a praça e as lâmpadas
distorcidas. Sentia apenas aquelas dores, iguais a todas as noites que
cheirava cola. Mas sonhava.
Sentiu frio. Viu dez a doze de seus amigos aconchegarem-se com cobertores
no gramado. Pegou seus trapos de debaixo de uma escada e juntou-se a eles.
Jogou fora o saco com cola e foi dormir, esperando que o dia de amanhã
sempre fosse melhor do que o de ontem.
Leandro Dóro