O mar entra pelos olhos de Marina com uma intimidade de parentesco.
Olhos que trouxeram o verão para minha alma tempestuosa e que no
tempo da ira ficavam quase negros como oceanos de chuva.
Eu me afoguei naqueles olhos muito antes do final dos tempos. Quando perdi
o paraíso em todos os sentidos possíveis.
Por causa deles, joguei biriba com seus parentes durante vários
sábados perdidos e enfrentaria todos os finais de semana tediosos
só para estar de novo ao abrigo de suas ondas.
A família de Marina era crente. Crente de que tinha a salvação
no bolso do colete e de que o mundo se dividia entre eleitos e perdidos.
Eu sempre fora um perdido convicto, mas me tornei um eleito por causa dela.
E vivia feliz na inconsciência de meu estreito paraíso, definido
pelas paredes do seu apartamento, onde nos encontrávamos como namorados
antiquados, sob o olhar vigilante dos cães de guarda paternos.
Só que, distante daquela cena, no segredo dos seus olhos marinhos,
Marina era uma labareda que tudo consumia no desejo implacável de
arder em combustão. E quando finalmente foi ao meu leito estreito
de solteiro, todas as previsões se confirmaram e o verdadeiro paraíso
se abriu para mim em promessas cumpridas. Ela era fogosa como seu olhar
incandescente e eu vivia prisioneiro daquele encanto selvagem de tal maneira,
que era capaz de passar a eternidade inteira jogando biriba a seco, só
para ter, um segundo, em meus braços, a dona daqueles olhos de mar
agreste.
Mas ( a felicidade tem sempre um “mas” espreitando perverso ) apareceu
Estevão, a serpente que iria me expulsar do paraíso.
Estevão era modesto e religioso. Capaz de recitar a Bíblia
em todos os seus versículos com uma perfeição que
mataria o próprio Satanás de tédio. O demônio
não prevaleceria sobre ele porque a monotonia lhe tiraria as forças
antes de começar a empreitada. Ele era tão chato que nem
o próprio tentador se habilitaria a levá-lo para suas hostes.
O Inferno não seria o mesmo depois da sua chegada.
Nem o meu Paraíso.
Encantados ao vislumbrar partido tão promissor ( Estevão
cortejava Marina com um descaramento proporcional à hipocrisia com
que me cumprimentava com a mão suada e mole, os olhos míopes
encarando os meus por trás das lentes grossas com uma piedade vaga
e premonitória) os pais de Marina encorajavam o sedutor, enquanto
fingiam me agradar com palavras mansas.
Enquanto crescia o entusiasmo dos parentes pelo outro, Marina ia se tornando
estranha, esquiva, fugidia. Já não me encarava com aqueles
olhos de esmeralda líquida. E o mar se fechava, tempestuoso, diante
de meus tímidos argumentos de rejeitado. Ela se enfurecia, a voz
meiga percorria a escala em vários tons para reclamar do meu ciúme
absurdo. Logo de quem? Do pobre Estevão, um rapaz corretíssimo,
religioso, um amigo desinteressado, cuja única intenção
era colocar nós todos juntos o mais rápido possível
no caminho do seu Paraíso sem-graça em que ficaríamos
eternamente a jogar um biriba interminável. Ela se aborrecia com
minhas ironias e ia embora zangada comigo.
Contra os fatos, não há argumentos.
É verdade que não existia nada que eu pudesse dizer concretamente
do comportamento de Estevão. A mão que segurava a dela, não
demorava um segundo a mais do que o estritamente exigido pelo meu olhar
vigilante. Nunca uma palavra de duplo sentido, apenas aqueles olhos de
cobra, vigiando, esperando a hora, deixando-se escorregar sobre o corpo
esguio e sobre os olhos verdes de Marina.
E a minha vida virou um inferno.
Seguia Marina pelos cantos da casa e da vida. Ligava milhares de vezes
para seu celular, esperando ouvir a voz masculina sussurrando do outro
lado, enquanto angustiado, o ouvido colado ao fone, investigava os sons
que circundavam a voz amada.
Não conseguia mais trabalhar ou estudar. Não conseguia mais
dormir.
E ela cada vez mais fria, mais distante. Os olhos quase sempre gelados.
E a eles eu também espreitava, aguardando sinais que não
desejava ver. Ou, quem sabe, esperando descobrir neles uma resposta positiva
ao meu ciúme para acabar com o tormento que me consumia. Queria
saber Marina devassa e mentirosa, adúltera como a imaginava, nos
braços falsos de Estevão, gemendo em lúbricos desmaios,
me excluindo. Expulso do Paraíso, mas justificado. Explicado. Digno.
Não um miserável espião de seus menores suspiros.
Finalmente, Marina me deu razão. Com olhar cinzento de adeus, se
despediu do meu ciúme e das minhas desconfianças, com o desprezo
de quem já tem garantia de felicidade comprada em lote alheio.
Eu me humilhei é claro, rastejei, pedi perdão de joelhos,
me cortei, rezei, fiz promessas e vergonhas inacreditáveis, joguei
cinzas nos cabelos, comecei uma greve de fome, mas não adiantou.
Marina se casa hoje com Estevão.
Neste momento decisivo do meu destino, não sei se dou um tiro na
cabeça ou faço um curso intensivo de biriba emocional
para aprender a dar melhor as cartas, interpretar o jogo com sabedoria
e, principalmente, para aprender o jeito certo de bater descartando o morto.
E ainda deixando que ele pense que está vivo.
Como se fosse possível, longe daqueles olhos de oceano.