Em cima da estante de vidro

      Em cima da estante de vidro, à direita da escultura modernosa estava o porta-retrato. Como era inútil! Houve um tempo, em que caras sorridentes se espremeram nele. Ela chegou a achar que ali era sua casa. Mero engano, nunca existiu lugar para ela naquela foto. Tinha sido expulsa de sua própria vida. Tudo tinha mudado e ele se mudado. Restou apenas ela, sentada no chão poeirento da sala vazia.
      Por mais ordinário que fosse, bom gosto musical ele tinha. Estela colocou o vinil que ganhou no seu vigésimo sétimo
aniversário. Nunca pensou que o presente original fosse o primeiro aviso. Teria sido escolha dele ou dela? Entre sussurros e gritos franceses, tomou goles do Black Label e percebeu que nunca ia conseguir ter um porre tão forte quanto sua dor. Ne me Quite Pas fora composta, especialmente, para seu desespero. Eles deviam saber disso.
      Quando descobriu tudo, eles estavam no sofá da sala estar. Ele deitado sobre Martina. MARTINA. Já fazia um tempo que ela não se referia à outra como Martina. Para Estela, Martina tinha se transformado em ELA ou A OUTRA. Jamais voltaria a ser Martina
      A música chegou ao fim, tão inesperadamente, quanto seu casamento. Levantou-se e trocou o disco. Eles ainda estavam
naquela fase onde o primeiro filho, mesmo antes concebido, já tem nome e padrinhos escolhidos. A trilha de Love Story não tinha sido uma boa escolha. A OUTRA era quem ia ser a madrinha. Decidiu isso, no dia em que chorou no seu colo, o fim do primeiro namoro.
      Estela, um dia, se chamou Penny Lane e Lucy in the sky with diamonds. Cada disco, era um novo nome e começo. Não foi grouppie porque nasceu brasileira. A OUTRA gostava de Ringo Star e era racional. Penny Lucy amava Lennon e se jogaria no abismo se ele pedisse. Conhecia bem a sensação da montanha russa e gostava deste estilo de vida.
      Conheceram-se na Faculdade de Sociologia. Ele falava sobre Marx, usava calça surrada e não cortava o cabelo. Não era
bonito, mas ela se apaixonou. No primeiro ano de namoro planejaram salvar o mundo. No último dia do casamento, ela precisou salvar sua vida.
      Não eram ricos quando casaram, mas sempre gostaram de coisas originais. Ele não era mais tão Marxista e foi trabalhar na empresa do pai. Estela tirou a saia hiponga e transformou-se em uma bem sucedida escritora independente. Seu primeiro livro se chamou Imprevisão e contava a história de uma menina que, quando abre sua caixa de e-mails, descobre o bilhete da melhor amiga que se suicidou e, depois disso, fica paranóica por não ter o lido antes, entrando então em processo de decadência devido ao remorso. Como seria interessante fazer o mesmo com os dois! Escreveria num pedaço de papel colante, uma historinha de despedida culpando-os pelo seu fim e o pregaria na porta da geladeira. Venderia mais livros, com a publicidade que ira gerar a sua morte, e toda a sociedade ira condená-los pelo resto de suas abomináveis vidas. Desistiu de tudo, por um simples detalhe. Ele ainda era seu marido civilmente e todo o dinheiro ganho com a vendagem de livros iria para seu bolso. Imaginou eles, em lua de mel, um mês depois de sua morte.
     No segundo ano de união, ganharam dinheiro. Compraram aquele apartamento. Fizeram festa de inauguração. Chamaram todos os novos amigos. A OUTRA era a única que tinha restado do passado de Estela como Penny Lane. Não era mais Lucy, porém se sentiu, naquele dia, in the sky with diamonds. A mãe dele tirou a fotografia da nora entre o filho e a amiga. Estela comprou o porta retrato de aço e o colocou com a foto, na estante defronte do então novo sofá da sala.
   Em dois de abril, às dezoito horas, a editora a convocou para uma reunião de urgência. Estela ligou para ele e disse que ia
chegar tarde. Em dois de abril, às dezoito e quinze avisaram-na da transferência da reunião. Dezenove e dez, descobriu tudo.
   Chegou em casa e achou que ele não tinha chegado. As luzes estavam apagadas e não havia sinal da bagunça habitual dele. A roupa não estava espalhada e não existiam restos de comida na cozinha.
   Primeiro veio o choque. Dois corpos nus misturavam-se em pleno sofá da sala de estar. O sofá era vermelho e eles o compraram juntos, num mercado de pulgas. Ela nunca tinha feito sexo no seu sofá. O sofá ficava defronte da estante de vidro onde estava a fotografia. Era inevitável que olhassem para ela, enquanto estavam se enroscando. Não tinham vergonha do que faziam? Será que nunca pensaram em convidá-la para um ménage a trois?
          Depois, surgiram os gritos e clichês. Não é nada do que você está pensando. Somos amigas, mas me apaixonei e não tive como evitar. Ela deu em cima de mim e é só sexo, me perdoe.
          Só sexo? O que pode ser mais que sexo bom, no seu confortável sofá da sala, com sua melhor amiga? Estela gostaria que ele tivesse transado com ela da mesma forma vigorosa com que estava fazendo com ELA. Ela também preferia que ele tivesse sido, sempre, tão arrumado, quanto naquele dia.
   E assim se separaram, ele levou seus pertences e quase todos os móveis da casa, só sexo virou casamento e filho. A criança
recebeu nome e Estela não foi convidada para ser madrinha. Desgraçada! A OUTRA tinha prometido que ela seria a madrinha de seu primeiro filho. Vagabunda! Ela lhe roubou o marido e até o nome que tinha escolhido para seu bebê. Parou o disco porque Love Story não combinava mais com essa história.
         Estela considerou a possibilidade de seqüestrar a criança, pois, tinha sido em sua casa que ela fora produzida, logo, lhe
pertencia um pouco também. O fruto dos dois tinha sido criado em sua propriedade. Pensou em entrar na justiça. Desistiu da idéia, após lembrar que crianças choram e ela preferia ouvir seus discos prediletos ao invés de pranto infantil.
      Colocou o primeiro e chorou. O porta retrato lembrava sua dor e Lennon  tinha morrido. Não gostava de Paul, ele era bonitinho demais. Ringo estava vivo e tornou-se sua nova paixão. Pelo menos isso, ela podia roubar de Martina

Renata Belmonte


 
 

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