Horizonte de Vênus

Era como um sonho estranho. Aquelas nuvens cinzas no céu de uma praia tão branca, infinita, vazia. Meus passos deixavam rastros para ninguém. Imaginava que um dia, milênios após, alguém encontraria o fóssil daqueles passos, memórias de um presente que deixo pra trás. Nada havia a frente, quimeras talvez, mas o que importava mesmo é o que andava ao meu lado. Criatura estranha era ele. Caminhávamos há quase trinta minutos e, até agora, nenhuma palavra sequer. Sorri ao atentar para seus dedos, tortos, calejados, grandes e disformes. Homem de pé chato é sempre tão estranho... Ligeralmente diferentes. Suas pegadas também seriam encontradas um dia e ele seria confundido com uma espécie diversa da minha. Espécies que caminhavam juntas em silêncio. Talvez usassem a telepatia. Perguntei a ele se não queria me beijar, assim, no pensamento. Mas nada, ele era também um telepata mudo. Continuamos a andar e nada de chegar a vontade de parar. Então aconteceu: a chuva desmoronou meus planos de algo acontecer. Eu até pensei em correr, mas..., bem, foi um pensamento estúpido. Ele, por sua vez, não demonstrara reação alguma, simplesmente continuava, os cabelos lisos a escorrer pelos olhos cinzas, distantes, brilhantes... ai, ai. Foi aí que escorreguei. Que tombão levei! Ele me olhou no chão, e então seus lábios moveram-se e demonstraram vida. Uma bela vida branca, feita de um sorriso tímido e cúmplice. Ri também. Acho que de cansaço.

Já era noite quando paramos e a chuva não nos esperou, seguindo em frente. Dois pontos escuros na praia, sentados juntos sob milhares de pontos brilhantes no céu. Havia algo de errado com ele. Na última hora e meia tinha falado de tudo, da praia e do mar, da linha imaginária do horizonte, das andorinhas no céu a se recolher em bando, de sua chegada até ali, de tudo, de tanto, como que tentando compensar o tempo perdido. Mas acho que não havia chegado ainda onde queria. Nós. Peguei sua mão, bem de leve, pra não espantar aquele membro qual borboleta que tinha voado pra lá e pra cá nos últimos instantes, como que a desenhar as palavras espraiadas com a língua. Ele me fitou os olhos pela primeira vez. Havia uma tristeza inerente ali, uma saudade de sei lá o quê, mas também havia uma intenção disfarçada em algum lugar. Acho que ele me beijou. A verdade é que sempre perdemos o momento entre o olhar fulminante e o êxtase de um beijo. E então eu mergulhei fundo naqueles movimentos. Éramos como ondas perdidas de um mar que lentamente se enfurecia, afogando tudo a sua volta numa caudalosa e violenta turbulência. Nesta altura nos apoderamos da noite, das estrelas, pois tudo que deixamos a vista foi o olhar mútuo. A cadência que seguíamos era a do próprio mundo a flutuar corpulento pelo vasto e escuro espaço.

...

Acordei após muito tempo, com um incômodo febril. A andorinha bicara meu peito nu duas vezes antes que pudesse espantá-la. Não foi bem uma dor, mas uma agonia nauseante, multiplicada pelo sol em meus olhos e a areia em todo o meu corpo. Gosto dele em minha boca, como que a acender uma memória esquecida mas prazerosamente latente. Algo soou estranho e impossível naquela paisagem. Um novo acordar. Dois bipes anunciaram: 7h30. Merda! Com um grunhido, abri o maldito ziper da camisola que prendia o bico de meu seio.

A. Ramôa


 
 

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