OS  EUCALIPTOS

                                    - I -

        Era noite e o carro descia, em alta velocidade, a velha estrada margeada por  eucaliptos. Nunca se cansara de admirar aquelas árvores enormes, imponentes  e de odor característico. Elas, como todas as plantas, em geral, a atraíam e  acalmavam. Creditava isso ao verde e à seus diferentes matizes, tonalidade  que lhe infundia serenidade, paz...
        Uma lágrima rolou-lhe pela face. Furtivamente olhou para o companheiro, mas  ele conduzia o veículo olhando diretamente para a frente.
        — Graças a Deus, não viu — pensou. Não teve coragem de enxugá-la.
        Deixou-a secando no rosto, cuidadosamente maquiado, e voltou a olhar os  eucaliptos. Queria gravá-los, como em despedida, altivos, calmos, serenos. Fotografou com a retina a estrada antiga, tantas vezes percorrida, iluminada pela lua cheia que, radiosa, imperava no céu escuro pontilhado de estrelas.
        — Noite linda, perfeita... — divagava.
        Mais uma vez foi tomada pela vontade de saltar, de se jogar do carro em  movimento. Encostou a mão na porta; não estava travada.

                            - II -

        Haviam acabado de jantar em um restaurante aconchegante, onde se namoravam, às escondidas, trinta anos atrás.
        O resultado não fora o esperado. Apesar de elogiar-lhe a beleza madura, superior, a seu ver, à da menina de outrora, o homem mantinha-se distante e pensativo. Ela podia ler-lhe os pensamentos e envergonhada, abaixava a cabeça. Felizmente o ambiente era escuro, apenas uma vela acesa à mesa, os semblantes encobertos pela penumbra. Por vezes, parecia que ele acordava, lembrando-lhe o amante de outros tempos. Cerimonioso, servia-lhe o vinho tinto, cuidadosamente escolhido, comentava a comida, sorria. Ela sorria, também, estendendo a mão para acariciar-lhe o rosto bem escanhoado, gesto antigo de carinho. Embora não a repelisse, era nítido o imperceptível recuo. Sentia-se morrer nestes momentos e continha, à custo, as lágrimas que toldavam-lhe a visão.
        Agora voltavam em silêncio, entregues a seus próprios pensamentos. Nada havia para ser dito.

                               - III -

        Ela o traíra mais de uma vez. Em silêncio, ele guardara o segredo das traições, descobertas quase por acaso. A natureza sempre lhe pregara dessas peças... Ela o humilhara deitando com homens ignóbeis e inferiores; e ele, por mais que se indagasse, não conseguia entender o porquê de seus atos. Perdia noites seguidas revirando-se na cama, pensando a respeito, sem encontrar a solução. Não a abandonou! Amava-a demais para isto, o que só fazia aumentar sua revolta. Uma idéia começara a tomar corpo em seu cérebro: matá-la durante o ato sexual. Faltava-lhe, todavia, coragem para tanto. Tivesse ela sete vidas, lhe tomaria seis, cuidando de manter a derradeira, visto ser impossível abdicar de sua presença! Apesar de tudo a amava, com uma força e uma violência que só podiam ser ditadas pelo desespero. Sim, ele a amava desesperada e dolorosamente!
        Sua única reação à ofensa foi fechar-se qual uma ostra, ensimesmar-se, passando a tratá-la com má disfarçada rispidez, deixando entrever, vez por outra, um certo desprezo. Esta era sua vingança!
        Lógico que ela sentiu o golpe e, talvez, para se defender, passou a atacá-lo:
        — Me diz, o que foi que eu fiz pra você me tratar desse jeito? Uma hora tá bem, outra hora tá com a cara virada. Sempre me julgando e me olhando com superioridade. Parece até que tem nojo de mim! Por que tem que ser assim, se a gente se ama tanto?
        Chorava, desesperada; ele tentava não ouvi-la. O pior de tudo era que acreditava em seu amor. Então, por que? Por que? Às vezes se condoía e abraçava-a como a uma criança. Sentia seu corpo frágil tremendo contra seu
peito e enxugava-lhe as lágrimas quentes, com os lábios secos de desejo. Quase sempre acabavam na cama, onde se amavam com a mesma paixão dos velhos tempos. Cessado o prazer, voltava-lhe, terrível, a lembrança da traição e ele, intimamente, a rejeitava.
        Ela notava, por mais cuidadoso que fosse em disfarçar. A tristeza voltava a seu rosto...
        Chegou ao ponto de perguntar-lhe se tinha outras, se não a queria mais.
        Ironia do destino! Tinha vontade de rir e chorar!
        E o pior é que nada podia fazer a respeito...

                              - IV -

        Sempre soube que ela não era mulher de um homem só. Lembrava-se de sua chegada, como jovem estagiária, em seu escritório de advocacia, sempre alegre e inconseqüente. Mesmo assim, não conseguiu resistir aos seus encantos de menina, ao jeitinho sapeca e infantil, e à incrível pureza de seu amor por ele. Ela seria para sempre sua menina, sua garotinha sacana... Recordava-se de quando levara-a, pela primeira vez, para almoçar em um restaurante discreto e elegante, afastado de olhares conhecidos. Na ocasião, contou-lhe ser casado.
        — Você é casado? Casado? — balbuciou, com os olhos marejados de lágrimas.
        Ele a abraçou, comovido, sentindo-a tão jovem e inexperiente. Estavam, ambos, apaixonados, e ele, apesar de escolado, sentiu caírem-lhe as barreiras .....  entregou-se! Intuía que aquela garota ia lhe trazer problemas; mesmo assim, como bom jogador, pagou pra ver...

                              - V -

        Ela sentira-se muito infeliz no início do romance. Insegura, fazia da vida um teatro, representando para a família, os amigos e familiares. Final dos anos sessenta, muita hipocrisia no ar.... as amantes de homens casados não eram bem vistas, muito menos benquistas...
        Como se não bastasse tinha concorrentes, sim, não era sua única amante, e isto foi-lhe mostrado de uma forma bem dura. Após uma discussão acalorada no escritório, provocada por uma visita que ele devia fazer a um cliente, ela saíra, enraivecida, batendo a porta. Horas mais tarde, esfriando a cabeça, dirigia sem destino, quando o viu passar. Estava muito bem acompanhado, por uma morena com cabelo armado de laquê. Seguiu o carro, desatinada, e viu-o entrar em um motel.
        Foi um escândalo e tanto! Ele, lívido, tentando contê-la. Ela, enlouquecida, investindo contra a pobre coitada que o acompanhava, só porque esta o chamara de — meu bem.
        — Meu bem porra nenhuma, ele é meu, tá ouvindo? Meeeu!!! — mais parecia uma mulher da rua brigando, desfiando um rosário de palavrões. O caso, por pouco, não acabou na polícia.
        Ficou sabendo, nesse dia, que haviam muitas outras; ele próprio, arrependido, lhe confessara. Implorava seu perdão e tentava lhe mostrar, com uma lógica puramente masculina, que amar era uma coisa e trepar outra, bem
diferente.
        — Trepar é como comer, mijar, cagar!
        Naquela época ela não entendia isso...

                           - VI -

        Passaram-se os anos, o amor foi solidificando-se e abandonaram a clandestinidade. A sociedade os aceitava, chamavam-nos "o casal 20 — clara alusão ao filme de mesmo nome, embora ele continuasse casado. Por três vezes engravidou e foi obrigada, por força das circunstâncias, a não parir. Este, talvez, tenha sido seu maior trauma. A bem da verdade, nada se pôde falar da conduta do companheiro. Esteve presente em todos os momentos, acarinhando-a, dengando-a. Não a abandonaria qualquer que fosse sua decisão — e era verdade! Porém, mais uma vez, a razão e os bons costumes preponderaram. Ainda não se estava na época das "produções independente";.
        Tornou-se depressiva, com tendências suicidas. Aconselhada por amigos foi fazer análise com um velho ensebado e meio doido. Após dois anos de estreito convívio, em que partilhava seus medos e intimidades com alguém em quem confiava, e que, sobretudo, era pago para ajudá-la, deixou-se tolamente seduzir. E o pretenso psicanalista, que para culminar era impotente,
encantado com a conquista, comentou o fato com os amigos...
        Passaram-se décadas, pontuadas por crises com o companheiro. Brigas, ciúmes, cobranças, de parte a parte. A única coisa que se mantinha imutável entre eles era o sexo. Sexo selvagem, sexo amargurado, sexo amado! Ela não conseguia entender o porquê de tanto rancor. Além disso, o instinto maternal tornara-se verdadeira tortura. Pensava, sem parar, nos filhos que não nasceram e sentia muito remorso. Mais culpas!
        Foi então que o conheceu! Quase um menino, com metade da sua idade e uma vontade enorme de vencer na vida, de preferência sem fazer força. Como esperto predador, atirou-se à caça da coroa, carente de carinho e atenção. Ela, por seu turno, jurou a si mesma que não passaria de uma relação materno-filial, mas qual...
        Sedutor ao extremo, misto de ator e modelo, mostrava-se muito à vontade no papel de anjo decaído. Lamentavelmente, não estendia sua competência aos jogos sexuais. Era uma merda na cama!
        — Minhas amigas têm amantes e se satisfazem com eles —  pensava, revoltada. Só comigo é que tudo sai errado! Meu homem é muito melhor que esta bosta!
        Mais tarde, o mocinho mostrou ao que vinha -  não passava de um michê! Tudo acabou quando, certo dia, aos prantos, contou-lhe que estava sendo chantageado por um colega. Este, sabedor da relação de ambos, ameaçava contar tudo a seu marido, se não recebesse cem mil reais! Para começar...
        Tomada por súbita coragem abriu ela mesma o verbo!!!  As máscaras caíram e com elas, o que restava de suas vidas...
        Quanto ao garotão, sumiu de cena e soube-se, mais tarde, que havia sido preso por tráfico de drogas.

                            - VII -

        Nunca entendeu o porquê de ele ter-se calado por tanto tempo. Só agora, tantos anos passados, é que desvendava os motivos de sua rispidez e do ódio mal disfarçado. Tivessem conversado às claras, apostava, certamente não
teria havido uma segunda vez!
        Infelizmente não podia entender que um homem como aquele não conseguia, nem queria, exibir-lhe, de modo algum, o que considerava uma fraqueza! Temia perdê-la, em definitivo.
        E por isso, deixaram-se viver nesse mundo de desconfiança e incomunicabilidade...

        O motorista, cenho cerrado, aumentara a velocidade do carro. Ela, por um instante, lembrou-se das violentas sensações de prazer que provaram, juntos, no passado, quando o automóvel disparava como um bólido.
        — Corre, corre! Mais, mais, acelera mais! E o carro quase a despencar em curvas fechadissimas... Era possuída, nestes momentos, por uma excitação incrível chegando, por vezes, ao orgasmo espontâneo. Ele percebia e só então diminuía  a velocidade. Ao vê-la esparramada, em êxtase, puxava-a para si, embriagado de tesão:
        — Você é louca, mas eu te adoro, viu?
        Ela sorria, lasciva, e abaixava a cabeça contra sua coxa, fazendo aquilo que ele esperava dela.

        Sua mão fez força contra a porta do automóvel. Ele virou-se, de chofre,
surpreendendo-a:
        — O que você tá fazendo? — berrou. Por que isto?
        — Por amor! — gritou, abrindo a porta.
        — Mas se eu te amo tanto!
        Foi rápido. O carro desgovernado indo, brutalmente, de encontro às magníficas árvores - mudas testemunhas de seus inúmeros delírios amorosos.
        Adeus belos e portentosos eucaliptos! Vidas ceifadas, almas libertas!
        A paz do verde, em seus diversos matizes....
        Por fim...

Danna D.

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