"Eu gosto de banho quente pelando", ele disse num tom de quem queria deixar claro que era bem diferente. "Eu gosto do colchão no chão e nunca vou ter mobília na minha casa", ele acrescentou logo depois num tom defensivo. Ela ouviu a tudo com simpatia e lembrou, já em casa, que quando tinha 19 anos sempre falava as mesmas coisas. "Que engraçado", ela suspirou em voz alta.
Tiago era de touro e Jane de peixes. No mapa astrológico dela, Vênus estava em Touro e isso fazia com que ela tirasse o mapa da gaveta a cada cinco minutos. Por outro lado, Tiago não tava nem aí pra Astrologia e achava que aquela bobageira de horóscopo era coisa doida de quem nasceu nos anos 60 e ainda vive no tempo dos hippies. Não adiantava lembrá-lo que também tinha nascido na mesma década. Na verdade o que ele queria era deixar claro que aquelas babaquices nunca iriam fazer parte da vida dele. E em outras palavras, que ela nunca gostaria de banho quente pelando e colchão no chão. "Pobre criatura", Jane pensava enquanto dirigia seu carro num tráfego infernal.
A Avenida Rio Branco naquela hora era um inferno, ou melhor dizendo, a Comédia de Dante. Todos os sangues latinos americanos precisando de terapia intensiva davam um ataque naquela hora do dia. Jane só agüentava aquele perrengue porque adorava o que fazia na vida. Ela era a professora mais querida da escola onde ensinava no Bairro Peixoto e todos os dias, depois das aulas, ela ia até às escadarias da Candelária cantar pro Tonho, Cachimbo, Zé Bala e Josete. Eles não lembram bem quando é que ela apareceu pela primeira vez. Só lembram que, de repente, uma mulher de cabelos grisalhos e covinhas nas bochechas apareceu no portão da igreja que dá pro mar com uma pasta na mão e perguntou se podia cantar pra eles. Eles se entreolharam e ignoraram a pergunta. "Deve ser louca, pancada coitada", disse o Tonho pros amigos. Jane já esperava não ser bem recebida e resolveu passar por cima do comentário do garoto. Abriu a pasta, olhou pro céu, respirou fundo e começou a cantar uma valsa antiga que nem a partitura dizia de quem era. Os garotos juntaram suas coisas e as latas quentes com os pacotes de amendoim torradinho e foram embora passando entre carros. Não era a primeira vez que Jane passava por isso mas ela nunca desistia fácil.
Nas três semanas seguintes, ela continuou aparecendo sempre às segundas, quartas e sextas, na mesma hora de sempre. E de tanto que apareceu, os garotos começaram a aceitar a sua presença mas nunca lhe davam atenção. A rejeição era algo normal na vida de Jane. Ela podia lidar com essas coisas com os pés nas costas. A vida de certa maneira era cheia delas. "Paciência", ela repetia pra si mesma todos os dias. "Um dia o som bate na alma. Um dia a gentileza entra nas veias". E, Jane foi colecionando cada olhar, cada gesto, cada palavra de curiosidade dos garotos.
Um dia, ela trouxe Tiago com ela e esperou pra ver sua reação. Ele ficou calado. Mais calado do que já era e a convidou pra tomar um chá na Colombo depois que os garotos lhe ofereceram amendoim e foram embora. Eles andaram em silêncio contornando as pessoas que andavam aflitas para tomar seus ônibus pra casa. Ao chegarem na confeitaria, os dois sentaram numa mesa de canto no fundo do lado esquerdo.
Tiago puxou a cadeira pra Jane e disse que não estavam dividindo a conta dessa vez. Jane sorriu e pediu um waffle com mel e chá de menta. Tiago pediu um misto quente e uma coca-cola. Jane sentia que Tiago queria falar alguma coisa mas não tinha idéia do que. "Queria te dizer que você não precisa fazer isso". "Isso o quê?”, ela perguntou. "Te acho uma pessoa muito interessante e…", ele gaguejou. "Eu não te trouxe aqui pra te impressionar Tiago. Te trouxe pra você olhar pra eles. Os garotos me lembram você". "Como assim?”, ele perguntou acanhado. "Tenho lhe dado o que há de mais lindo na minha vida nos últimos 3 meses mas tem sempre um muro entre a gente", Jane falou com uma ponta de tristeza. "Eu gosto de banho frio e as estrelas e planetas do céu fazem sentido na minha vida no entanto, quando eu te toco, nada disso me parece importante. A beleza da sua pessoa é mais linda do que quando a lua aparece no céu".
"Não estou entendendo Jane", ele disse, todo confuso. Ela respirou fundo e fechou os olhos. Depois, olhou pras suas mãos, pro teto e sorriu dizendo: "Eu te acho confuso, egoísta e sofrido como todos aqueles garotos mas eu sei que qualquer ser humano precisa de um tempo pra confiar e se dar sem medo. Hoje estava me perguntando o que será que está passando dentro de você desde que nos conhecemos e me perguntando porque suas críticas sempre vêm antes do seu amor. Mas agora, depois da sua gentileza em me trazer aqui, eu tenho esperança".
Tiago não teve coragem de olhar pra Jane mas esticou o braço direito e segurou a mão dela. Depois disso, ele levantou a cabeça, apoiou o queixo na mão esquerda e a fitou novamente. Quando conseguiu coragem, Tiago respirou fundo, olhou pra Jane e disse: "Obrigado".
Ela sorriu timidamente e respondeu sem pestanejar: "Eu é que agradeço pelo amendoim que você tá me dando".
Kátia Moraes