1970... Havia se passado quase um ano que Armstrong tinha pisado no barro da lua — é barro mesmo... Branco, mas é! Zagalo — ainda com um L só —, de cabelos castanho-escuros, anunciava o goleiro Félix como titular da seleção brasileira! Péle encantava o mundo com seu futebol arte. Parreira era só pé de fruta e os Beatles já estavam separados! Lula, há muito que tinha perdido um dedo no torno de uma fábrica em São Bernardo do Campo, e ninguém... a não ser em Maceió, tinha ouvido falar em Fernando Collor de Mello! Como também o outro Fernando, exilado, longe... muito longe, e que já sonhava em um ser presidente do Brasil!
Era o Presidente Médici quem dava as cartas no Planalto; todo sabichão era Bidu, assim como o cara careta era chamado de Boko Moko. Era tempo de uma Brasa Mora! Havia um cheiro de brilhantina no ar...
Enquanto tudo isso acontecia, Orlando Boa Pinta, de bigodinho vôlei — como no jogo: seis pelinhos de cada lado — costeleta à Elvis Presley, por ser sábado, e só por isso, estava se pondo nos trinques para sair: calças boca de sino; cinturão de fivelão com a cara do Guevara, sapato carrapeta, camisa Volta ao Mundo, com barbatanas dando formato ao colarinho — a de ban-lon estava no tanque para ser lavada —, cheiroso, — só usava Lancaster argentino! —, dava seus últimos retoques em seu topete lambuzado por brilhantina Glostora! No bolso da camisa, cigarros Continental, sem filtro e um pente Flamengo — inquebrável!
Como escrevi, era sábado, ele preparava-se para uma noitada de delícias! O fim de semana prometia e muito! Havia combinado e marcado um encontro com Dulcinéia Doce Mel: iriam juntos à Praia Grande fazer um piquenique e pegar uma cor. Bem... na verdade, cor mesmo, só ele, ela era marrom por natureza.
Orlando havia preparado tudo: 50 paus no Bolso — naquele tempo pau ainda valia! — duas passagens, ida e volta, do Expresso Brasileiro, radinho Spica, com pilha nova, alpargatas de corda, duas laranjas, oito comprimidos de Engov — já se consumia... e como! Tudo perfeito — tudo mesmo! — não estranhem: camisinha, que era chamada de preservativo, ou camisa de Vênus, muito pouco se ouvia falar!
À noite... Orlando, felicíssimo, cantarolando: Soy Loco por ti América, sai na maior "vula" para pegar o ônibus Penha-Lapa que iria levá-lo à praça Clóvis Beviláqua ao encontro por ele tão aguardado!
Sentado numa lanchonete, ao lado do prédio do corpo de bombeiros, bebericava uma "Crush" com vodca. Enquanto bebia, lia, na banca de jornal da calçada, as manchetes do dia: "Brasil pronto para conquistar definitivamente o Caneco" — "Faz três anos que Che Guevara morreu"; na revista, "O Cruzeiro", o título: "Tropicalismo de Caetano e Gil, invade espaço do Rei Roberto Carlos".
Boa Pinta, ansioso, pensava com seus botões: "Poxa... faz cinco anos que espero por este momento, parece milagre, por fim consegui ganhar a Doce Mel... É hoje, ou nunca mais!" Enquanto pensava, bebia. O tempo custava a passar... Meio grogue pela vodca consumida, Orlando impacientava-se com a demora de sua deusa. Há muito que idealizara esse encontro, estava entusiasmadíssimo pelo que poderia acontecer.
O tempo continuava a correr... Senão quando... Dulcinéia entra na lanchonete... Linda, com um vestido saco de bolinhas; colar imitando pérolas, coque no cabelo cheio de laquê — nem precisava: era mulata — ruge nas maçãs do rosto, uma berruga sensual, pintada no canto da boca, borrada por um batom vermelho e óculos espelhados, estilo gatinho... Uma gata!
— Oi broto... Como você demorou!
— Ih! Landão, nem lhe conto... Um big ônibus da CMTC, bem na rua da minha casa, atropelou duas lambretas. Atirou as duas em cima de um DKW de praça que bateu em um Simca Chambord estacionado na calçada. Atravancou todo o trânsito — já naquele tempo começava o tormento! — tive que vir de carona numa Romiseta velha, caindo aos pedaços... Quase não consegui entrar dentro dela! Mas agora, Landão, sou toda sua... só falta passar em casa para pegar os documentos que esqueci.
— Ainda!... O Expresso não vai esperar!
— Vai sim!... E qualquer problema nós trocamos as passagens — pagaram a conta, eu não sei com precisão se com cruzeiro, cruzado, ou novo cruzado... Real, tenho certeza: não era!... E saíram abraçados pela rua.
Orlando era um cara fraquinho. Bem fraquinho, muito magro. Na realidade era mais fino que assobio! Doce Mel, por sua vez, era daquelas mulatas de fechar o comércio em época de Natal! Um verdadeiro violão! Os dois, faziam um par esquisito, agarradinhos, um ao outro, pareciam o número oito com um ponto de exclamação (8!)... Assim, trocando juras de amor, foram para casa de Doce Mel.
Quando lá chegaram, Furta-cor, o pai de Doce Mel, que morava no Cambuci, estava em visita surpresa a sua filha predileta.
— Oi Dulcetinha... Ainda bem que você voltou! Já estava quase indo embora. Tô eu... A mãe... O tio Pedrão, a tia, o tio e a "sobrinhada"... Viemo tudo para lhe ver. Dá um abraço aí no paizão! Ih!... Quem é o magrão?
— E... Eu!?... Sou o Landinho... Co... co... nhecido da Dudu... Muito pra...pra... zer!
Furta-cor tinha um ciúme doentio de Doce Mel, por diversas vezes tinha dado porrada em muito nego que se aproximava dela. Ele era um crioulo 4x4... Um verdadeiro guarda-roupa. Era daqueles que primeiro bate e depois pergunta se estragou! Pegou na mão, e só de cumprimentar quase que destronca o pulso de Orlando.
— Muito prazê... Pra quê essa mala? Vão viajá? — Fazendo-se de desentendido. — Urra legal, magrão! Tava percisando memo de uma prainha. Tamo nessa! Você num vai regulá com o seo futuro sogrinho... vai? — Furta sabia do programa dos dois. Ele havia lido um bilhete que Dulcinéia deixara para a sua empregada em cima da mesa avisando do piquenique com Lando.
Ao mesmo tempo em que perguntava, meteu a mão nas costas de Lando, que, com o solavanco, cuspiu longe o chicletes que mascava para disfarçar o cheiro forte da vodca. Diante disso, apavorado:
— Que qui é is... sso se... seo Furta — sabia da fama do velho — era minha intenção lhe convidar. Não faça cerimônia, se é pra ir... Vamos todo mundo junto... Não é Dudu?
— Claro... Claro... Não vejo nenhum problema! O senhor falou, está falado!
— Assim tá legal! Óia magrão... eu gosto de avisá pra num dá probrema despois... Tamo tudo duro... A dispesa é tua! Cê num vai ratiá essa mixaria cum teu sogrinho... VAI?
— Que é i... sso sogrinho!... Genro é pra essas coisas — engoliu seco — Deixa comigo!
Landão tremia de raiva e de medo. Tanto tempo esperando a oportunidade de ficar sozinho com aquele monumento de mulata... e naquela hora não tinha saída: ou levava aquela baita "trempa" junto com eles ou entrava na bolacha. O melhor era se "mancar", ficar quietinho e arrumar um jeito de comprar mais nove passagens para o litoral. Ainda bem que tinha trazido o talão de cheques do Banco Auxiliar em sua sacola! E, acreditem, desde aquele momento, até o domingo à noite, podem ter certeza, foi o pior fim de semana da vida de Landão, só não morreu porque não tinha chegado a hora... mas quase!
Sem entrar em detalhes... na segunda-feira, acabrunhado, cansado, com fortes dores em todo o corpo, queimado pelo sol, sem dinheiro... Escreveu em seu diário relatando o ocorrido — era metido a escritor:
São Paulo, 15 de Maio de 1970. Não quero mais saber de minha Doce Mel. Esse fim de semana vai ficar em minha memória eternamente; nem vou querer escrever os pormenores, apenas vou resumir o principal: fiquei com disenteria, sem dinheiro, passei quatro cheques sem fundo... Com bolhas nas costas, queimada pelo sol, tive que ficar de goleiro defendendo 100 pênaltis batidos por Furta-cor e Pedrão que, disputavam para saber quem comeria o pedaço do peito de frango que eu havia comprado numa barraca da praia!... E o pior... Eu, que tanto sonhara com esse encontro, nem sequer consegui dar um beijinho na face de minha querida Doce Mel. Pensar em fazer sexo, antes do casamento, nunca mais!
Hoje, passado muito tempo, a partir daquela data, o diário de Orlando Boa Pinta está em branco. Ninguém soube mais dizer sobre o paradeiro dele. Há quem diga que ele se tornou escritor e lançou um livro: "Sonhos de uma noite de verão..." — não confundir com a obra do grande Sheaskpeare. Nele ele relata os acontecimentos desse triste e fatídico fim de semana. Não sei se o livro é bom, contudo, dizem, para quem é daquele tempo... Traz muitas saudades!
O que sobrou da história:
"RECORDAR É VIVER!... SE BEM...
QUE , ÀS VEZES, É MELHOR ESQUECER.
Guido Carlos Piva