A VOLTA

            A pequena saliência que  serve de mira na ponta do cano do revólver calibre 38 machucava o céu da boca. Sentia-a fria. Desajeitado, não sabia se era melhor manter a boca escancarada ou com ela envolver a porção final do cano, como se o chupasse. Antes que decidisse, o tiro ecoou debaixo da passarela, espantando apenas alguns pardais.
            Poucos carros passavam pela pista do aterro do Flamengo naquela hora de um belo dia de sol que se iniciava.
            Serena mas agilmente, recompondo-se, alcançou o piso da passarela. Deu de cara com um grupo alegre de idosos que, determinados, iniciavam os exercícios matinais em seus tênis, calções e camisetas coloridas. Pensou em saudá-los mas não foi rápido o suficiente.
            Passou apressadamente pelas crianças que brincavam no parque vigiadas por suas babás. Com algo de arrependimento prosseguiu. Queria, mas não se deteve.
Em direção ao Largo do Machado, entrou numa padaria. Agora, calmamente, apreciava a variedade de pães-doces e se deleitava com o aroma de café fresco servido aos primeiros fregueses. Espantado, apercebeu-se de que, há muito, nada daquilo sentia. De costumeira apenas a ausência de fome, da qual até se esquecia nos dias sempre atribulados. Nada comprando, saiu e seguiu pela rua Dois de Dezembro em direção Largo do Machado
            Na praça parou para observar o fluxo rápido de uns que desciam dos ônibus e de outros que procuravam as escadas da estação do Metrô, por entre vendedores ambulantes que iam armando suas barracas. Sentia-se sempre diferenciado, destacado. Talvez algo superior. Nunca houve, antes, motivo para se misturar ou aturar aquela gente. Naquele momento, no entanto, não havia a porção de repulsa que o caracterizava. Em vez do desprezo, o interesse. No lugar da irritação, um pouco de atenção.
            Surpreendeu-se e achou bonita a nova fachada de seu prédio, de pastilhas brancas, reformada há mais de dois anos.         Tocou somente uma vez o botão do elevador,  pelo qual esperou pacientemente. Não convivia com a tranqüilidade interior percebida. Com inédita delicadeza abriu a porta do apartamento. Queria manter o silencio, a paz inaugurada dentro de si. Mal conhecia a quietude e o aconchego das manhãs em seu lar, ali sentidos. Sentou-se no sofá para olhar a divertida desarrumação da sala. Enternecido, examinou cada objeto, cada móvel, como se não os conhecesse. Estremeceu ao ler "papai" nos ajuntados cubos de madeira que rodeavam o velocípede. Nunca tinha tempo para o filho, constatou. Da porta do quarto, por uma pequena abertura, abençoou, na penumbra, o menino que dormia na beirada do berço, braço e perna pendentes.
            Examinando os CDs da filha, chegou a cantarolar um trecho de uma das canções que, repetidamente tocadas, torturavam-no quando queria trabalhar e o deixavam desconcentrado. Sem recriminar,  desta feita, depois de levar ao peito, beijou o retrato dela na mesa entre fotos de astros e estrelas do rock. Não teve coragem de abrir o diário, de capa ornada com inúmeros corações, deixado na mesa de cabeceira. Docemente, deitou-se por alguns minutos na cama da filha que dormira na casa da amiga depois da festa.
            Correu para desligar o telefone celular largado no seu lado da cama, onde Lúcia ainda dormia. Percebeu que já era impossível atender a clientes ou sócios e falar de negócios.
            Percebeu ainda que era, ultimamente,  mais familiar ao escritório do que ao leito conjugal. Percebeu também que o rombo na empresa, que o levara ao desespero, era menor que a distância interposta entre ele e os seus, entre ele e seu lar. Percebeu, enfim, o muito que já não tinha mais.
        Incapaz de se despedir saiu em silêncio.
            De volta à praça, misturou-se aos passantes. Gostou da gargalhada autêntica do aposentado que vencera uma partida de jogo de damas. Ouviu atentamente às ofertas de promoção dos camelôs e sentou-se no banco para apreciar os pombos e os que jogavam milho. Quis mais uma vez o perfume de pães e café da padaria divertidamente lotada.
            Parou no parque iluminado àquela hora por uma luz acolhedora, antes fonte de insuportável calor. De perto das babás, onde avidamente ouviu a descrição do capítulo da novela, distraiu-se com o folguedo de meninos e meninas na manhã de Sábado. Antes de seguir voltou o rosto para o sol como se o beijasse em adeus.
            Reverente, com um sutil movimento da cabeça saudou os velhinhos arfantes e suados, que voltavam caminhando no sentido inverso da passarela. Desceu e alcançou a beira da pista logo abaixo.
            Ao som de motores e uma sirene ao longe, deitou-se.

Ricardo Hugo Oliveira

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