CRIME E CASTIGO

          MORRE A GRANDE DAMA. RODIA PORTEMAN IS DEAD. LA GRANDE  MADMOSELLE BRASILIENNE EST MORT. As manchetes de jornal foram suficientes para atrair a multidão para o grande funeral.

          Naquela manhã de quatro de fevereiro, o sol sorria tão  intensamente quanto os inimigos da defunta que estavam presentes. Era o acontecimento do ano. Uma mulher vestida estilo Jackie Onassis reclamava da falta de infra-estrutura do enterro, enquanto o Governador arregaçava as mangas do paletó. Pastores, de Igrejas diversas, citavam  passagens bíblicas em voz alta tentando disputar a atenção do público com o Bispo. A filha caçula de uma senhora suada de preto era a única pessoa que chorava. O irmão de seis anos não cansava de apertar suas bochechas.

          Na porta do cemitério, um homem anunciava soutiens de alça de silicone por cinco reais. Uma menina, de blusa fechada, disse que as alças em contato com a pele pareciam durex. Próximo ao caixão, alguém que se nomeava melhor amiga da defunta, contava  como foi a sua trajetória de vida. O rapaz, de camisa social verde, perguntou para qual era a data do aniversário da morta. Não se deve dar ouvidos, a tudo que é dito. Até a prima do cunhado do irmão se acha pessoa próxima, nessas horas. Mas, na dúvida, não custa nada contar o que foi relatado.

  Durante vinte anos, Ródia Porteman  foi  uma celebridade. O casamento com um judeu, dono de uma  empresa de equipamentos para perfuração de petróleo, tinha a  transportado  para a condição de a mulher mais rica e famosa do país. Em entrevista concedida a uma revista de ampla circulação, contou que detestava flores. Desde que tinha se transformado em alvo de flashes, sua casa se tornou um bosque. Todos os dias, recebia bouquets vindos de todas as partes do mundo e de pessoas que nunca tinha conhecido. Flores se tornaram sinônimo de favores. Preferia ganhar ratos mortos.

      Foi uma mulher bonita. Quando adolescente, gostava de sentar no colo dos pais das amigas, para sentir o quanto era desejada. Adorava ser bolinada, mas aprendeu a fingir que não. Os olhos de boneca contrastavam com a boca maquiada de intenções. Era o pecado no corpo de um anjo. Quando atingiu a maioridade, foi expulsa de casa por ter tido relações sexuais com o coroinha da Igreja. Virou a fofoca do momento. Onde estava o amor cristão que tudo aceita e perdoa? Arrumou as coisas e foi embora da cidade.

          Na capital, resolveu esquecer seu passado. Seu nome, Rodiane, tinha sido  criado a partir da união do de seus pais :Rodíres e Anete. Como os detestava ,resolveu diminuir ao máximo qualquer lembrança que pudesse ter. Tornou-se apenas Ródia, com lacunas no sobrenome.

          Era o tipo de pessoa que sabia  fazer bem qualquer coisa. Podia ter sido cantora, médica ou engenheira. Tornou-se garçonete e amante fervorosa do dono da lanchonete. Era  sensual até de avental. Qualquer um acreditaria que fosse a modelo do catálogo da borracharia. Vestia roupas baratas, mas não era brega. Se imaginasse que alguém iria vender soutiens de alças de silicone, próximo ao seu funeral, teria morrido antes, para não passar por tal situação.

          O patrão concordou em pagar seus estudos, desde que ela  continuasse tendo tempo para ele. Tinha dificuldades de ereção, devido à idade, e se considerava sortudo por transar com alguém tão atraente. Não existia Viagra, naquela época. Encontravam-se constantemente, até que Ródia, no outro dia de sua formatura, foi trabalhar como secretária numa multinacional de ferro.

          Ainda na faculdade, decorou frases famosas e aprendeu a linguagem dos ricos. Falava sobre vinhos como se fosse uma autêntica sommelier. Indicava pratos de restaurantes, que nunca tinha conhecido. Criou o hábito de andar sempre com unhas bem feitas. Preocupar-se com os detalhes das extremidades, era coisa de gente fina, pois só estas podiam dar-se ao luxo de, toda semana, gastar com manicure.

          Por ser extremamente perfeccionista, conviver com ela era um pesadelo. Não que fosse má .Certa vez, pagou todo o tratamento da dama de companhia que sofria de câncer. Era egoísta. O inferno são os outros, aprendera isso com Sartre. Achava que todos tinham que estar sempre disponíveis. Uma vez, acordou a empregada, às três da manhã, para que preparasse seu chá. Não suportava gente preguiçosa.

          Teodoro Porteman a conheceu na sala de espera da multinacional. Ficou impressionado com a cultura da bonita secretária. Ela sabia tudo sobre o mundo petrolífero e lhe ofereceu um capuccino com Godiva. Conversaram mais alguns instantes e foi convidada para jantar. Na semana anterior, Ródia tinha ouvido o  chefe falar sobre a visita do ilustre fabricante de sondas e informou-se sobre a atividade. Em um mês, ele abandonou a esposa e  se casaram.

          Era Vargas. A lei 2004 cria a Petrobrás. Teodoro Porteman foi o pioneiro da fabricação de equipamentos de perfuração. Tornou-se fornecedor exclusivo da grande empresa. Em 1974, quando descobriram a bacia do litoral fluminense, Ródia é nomeada vice-presidente. Era uma exímia empresária. Em pouco tempo, estavam exportando para todas as grandes companhias mundiais.

          Na manhã seguinte a morte do marido, sentou-se na cadeira presidencial e se sentiu poderosa. Tinha se tornado o que queria. Sua primeira providência foi a demissão da secretária de origem cigana. Quando criança, pediu para ler sua mão e esta a alertou sobre as armadilhas da ambição. Tinha feito uma previsão errada e merecia ser castigada por seu erro.

          Os negócios continuavam indo bem. Conseguiu quebrar  quatro empresas concorrentes. Olhou-se no espelho. Nem a crise do petróleo, em 73, a deixou tão desesperada. Sua geografia não era mais a mesma. Os seios tinham se tornado montanhas de terra frouxa. O mapa da pele tinha se transformado devido às rugas e linhas de expressão. A boca não era mais maldita. Ele não era mais o mesmo. Quebrou todas as taças de cristais Baccarat que viu na frente.

          Não se sabe dizer quem foi o seu assassino. Os poucos amigos dizem que a depressão foi a culpada pelo suicídio. As más línguas ainda  insistem na tese do vice-presidente amante que, ao perceber que iria ser demitido, dissolveu duas caixas de tranqüilizantes no vinho da dama. Cada pessoa conta a versão que lhe é conveniente.

          O caixão estava sendo fechado e ela tinha se tornado uma defunta comum. A morte iguala todas as pessoas. Não vestiram-na com a melhor das roupas. Alguém a enrolou em um conjunto de algodão azul marinho. A  pretensa melhor amiga olhou para a lápide e respondeu ao rapaz de camisa verde o ano do nascimento. O túmulo estava tão florido quanto o Jardim de Éden. A criança parou de chorar e a mãe, que já tinha matado a curiosidade, foi embora. Sobrou um pesado silêncio, até a ex-dama de companhia chegar.

          Tinha nas mãos um isopor de tamanho médio e o lançou com toda a sua força no buraco do caixão. Estava envelhecida, muitos anos tinham se passado. Mesmo assim, soltaram lágrimas dos olhos, quando os corpos dos ratos se misturam entre as folhas e pétalas.

Renata Belmonte

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