Canapé com transgressão

    Havia um clima de animação nervoso no ar. Alguém no grupo sugeriu um barzinho ali por perto, o mesmo de sempre. Inesperadamente, Raissa insistiu para que fôssemos ao seu apartamento, que também ficava próximo. Seria uma festinha para comemorar o encerramento do curso de Inglês. Rogério se prontificou a levar as cervejas, Marina perguntou se poderia levar uma amiga e Márcio, o professor, aceitou ir, após várias insistências. Eu já estava pronto a dar uma desculpa qualquer e voltar pra casa, pois estava exausto, quando Samira apareceu. Ela freou bruscamente o velho carro vermelho antes de estacionar, causando um susto geral. Estava deslumbrante e pelo modo como dirigia, dava pra sacar que estava bêbada ou quase.
    Disse que voltava de uma outra festa, uma confraternização no ministério. Risadas sobre a barbeiragem ao
volante, comentários sobre o novo corte de cabelo, a empolgação do grupo crescia. Ela estava realmente linda, parecia ainda mais alta e loura, chamava a atenção de todos que passavam pela calçada.
    Fomos de carro, pois não era tão perto assim. O apartamento era grande, uma ampla sala, decorada de forma discreta. Raissa é casada com um militar. Já dá pra imaginar o quanto o lugar é bem arrumado, às raias da neurose. Os filhos ainda estavam acordados, dois garotos, vestidos quase iguais, os cabelos curtos e impecavelmente penteados. Logo foram mandados para o quarto.
   Para surpresa geral, uma grande mesa sortida de frios e tira-gostos nos aguardava na sala. Raissa havia preparado com antecedência aquela confraternização. As latas de cerveja foram colocadas em um caixa de isopor cheia de gelo. Servi-me de vinho tinto. Roberto escolheu um cd de música brega e colocou em alto volume, provocando risada geral. Dei uma olhada nos discos. Música romântica era o que não faltava. Samira, com uma latinha de cerveja na mão, pôs um disco de uma banda de rock-descartável-que-toca-em-FM-pseudo-irreverente-com-refrão-pegajoso. Ela revelou ser back vocal de uma
banda de rock. Fiquei imaginando-a no palco soltando alguns gritinhos de vez em quando, sensualíssima, de mini saia, meia e botas, deixando a platéia de adolescentes com febre alta.
   Na mesa, a conversa ainda estava fria. Comentários sobre notas, elogios ao professor, que se revelou pouco falante em português, e sobre os filmes em cartaz nos cinemas. Todos diziam já ter assistido o filme tal, dirigido por fulano de tal, super elogiado pela crítica, mesmo que fosse apenas para não passar por ignorante. Raissa, com seu cabelo escovado e jeito de mãezona, insistia para que todos comessem. Deve ter gastado uma nota por tantos salgados, incluindo um pão gigantesco e recheado que ocupava quase a mesa toda.
   Samira sentou-se à mesa e comeu, com desenvoltura, várias empadas e um pedaço do pão, enquanto eu observava seus lábios se moverem. A campainha soou. Era a tímida Flávia, colega da turma e amiga de Raissa, acompanhada do namorado, com cara de militar.
   Uma conversa puxa a outra, às vezes sem muita coerência e, entre um canapé e outro, tocou-se no assunto mais abordado em qualquer mesa de bate-papo: sexo. E não poderia ser diferente, já que o centro das atenções da roda era Samira que, além de back vocal, é sexóloga. Disse que adorava trabalhar com adolescentes, pois eram puros. Sei. Mais uma vez imaginei espinhentos garotões admirando aquela mulher toda, tentando pegar alguma brecha na cruzada daquele belo par de coxas.
   A conversa começava a esquentar, proporcionalmente ao consumo de cerveja e vinho. Falou-se de relacionamentos, machismo e homossexualismo. Roberto fez uma piada de mau gosto, com a voz pastosa. Pelo visto, não estava acostumado a beber. Marina e a amiga, Juliana eram de opinião que a opção sexual das pessoas deveria ser respeitada. O namorado-com-cara-de-militar deu a entender que considerava o homossexualismo uma doença. Não teve coragem de afirmar com todas as letras, pois estava em franca desvantagem. Revolta geral. Márcio argumentou que estamos em plano século 21, que precisamos abrir a cabeça e Juliana foi direto ao ponto: "tem muito machão por aí que bate na mulher e é gay enrustido".
Aproveitei para soltar um veneno, repetindo uma frase que escutei uma vez: "muita homofobia é sinal de alguma homofilia". Talvez ele tenha confundido homofilia com hemofilia, o certo é que o machão-com-cara-de-militar pareceu não entender e disse que os gays são pessoas que realmente precisam de tratamento. Samira, após citar Freud e Reich para falar sobre repressão sexual, desejo e instinto - sem conseguir convencer muito -, resolveu apelar para um exemplo: "se você estivesse com os olhos vendados e alguém fizesse uma carícia erótica, você não se sentiria excitado, independente de ser homem ou mulher?" Márcio, o professor, foi o primeiro a dizer que sim. Marina e Juliana, concordaram, completando que no futuro todos serão bi ou trissexuais (o que, no íntimo, causou-me certa preocupação!). O cara-de-militar não deu a batalha por vencida e contra-atacou rasteiro, dizendo que jamais ficaria em uma situação como aquela, de olhos fechados. Raissa tentou acalmar os ânimos servindo pães de queijo "quentinhos, uma delícia", proposta que causou um embrulho no meu estômago e provavelmente no de todos na mesa. Roberto foi pegar mais cerveja. Flávia foi a única que comeu o pão de queijo, após insistência da amiga. Estava pálida, com os olhos avermelhados. Cochichou alguma
coisa ao ouvido de Raissa, que a levou para a cozinha.
  A discussão continuava, cada vez mais acalorada. O cara-de-militar se mostrou um católico fervoroso. "Pra mim, não é normal, o normal é ser heterossexual. Deus nos fez assim, para a continuação da espécie", disse. "O que Jesus nos ensinou é que o mais importante é o amor ao próximo, 'amai-vos uma aos outros', é o que está na Bíblia", respondeu Marina. "Pensei que fosse amai-vos uns sobre os outros", brincou Roberto. "E o que é ser normal afinal de contas? Na Grécia, o homossexualismo masculino era considerado normal, principalmente entre os velhos, os sábios, e garotos", lembrou Samira, com ar professoral. "Um bando de depravados", soltou o cara-de-militar. Antes de receber o fogo cruzado, Flávia foi ao seu socorro, dizendo que não se sentia bem e queria ir embora. Ele então se levantou como um general em retirada estratégica. Ficamos preocupados com Flávia, que realmente não parecia nada bem. Eu podia jurar que era por causa do pão de queijo. Raissa disse que ela havia sofrido um trauma recentemente e por isso ainda estava abalada, "ainda mais com toda essa discussão". "Como assim?", quisemos saber. Explicou que o pai de Flávia foi flagrado pela mãe com outro cara na cama. Era um gay enrustido. Sempre machão em casa, autoritário. Foi um choque pra toda a família. Silêncio geral na mesa durante quase um minuto. "Acabou a cerveja, vou sair pra comprar mais", anunciou Roberto. "Não precisa, pedi ao Cláudio que trouxesse. Ele deve estar chegando", disse Raissa. "Mais um milico. Essa guerra vai longe", pensei com os meus botões.

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    Passados alguns minutos, a conversa voltou ainda mais animada. Continuamos a falar sobre sexo. Samira dizia que a música que estava tocando a lembrava uma noite em que fez a maior loucura da vida dela, com dois caras. Todos queriam saber detalhes, mas ela não falou e nem precisava. Como a cerveja já tinha acabado, atacamos o estoque de bebidas da casa: uma garrafa de whisky, champanhe e vinho. A mistura foi explosiva. Roberto, a essa altura, não parava de rir. Raissa já estava ficando preocupada com ele, passando a mão em seu braço e na sua testa. Todos tinham percebido, há muito tempo, que havia um clima entre os dois. Nas aulas, ela só queria ficar do lado dele, encostava-se o tempo todo nele e isso já era motivo de brincadeiras do grupo. Inesperadamente, Roberto abraçou Raissa e deu um longo beijo em sua boca. Ela ficou parada, completamente branca, como se todo o seu sangue tivesse desaparecido. Em seguida, Roberto perguntou onde ficava o banheiro. Deve ter vomitado pelo menos uma caixa de cerveja.
             Raissa ficou na porta do banheiro perguntando se estava tudo bem, se ele queria chá ou remédio, durante quase uma hora, enquanto ríamos, já sem muito controle ou motivo. Samira colocou um disco de Carlos Santana e me puxou pra dançar. Eu mal conseguia ficar de pé, mas reuni todas as forças e tentei acompanhar os seus passos, esbarrando nos móveis. A risada do grupo aumentava. Ela também ria e dançava como uma divindade, balançando os longos cabelos. Encostava-se em mim, provocativa. Podia sentir o seu cheiro, inesquecível, que me fazia enlouquecer e desejá-la ardentemente. Agarrei-a pela cintura, mas ela se afastou e continuou a rir, a rir alto. Girava ao meu redor, imitando uma dançarina árabe. Giramos, pulando, como dois hippies em Woodstock. Ríamos juntos. Fui à mesa pegar mais um copo de vinho ou o que estivesse ao alcance. Deparei-me com Juliana, Marina e Cláudio se beijando, alternadamente. Talvez fosse uma espécie de delírio provocado pelo álcool. Ri, pensando no quanto estava bêbado. Levei uma garrafa para Samira, que bebeu no gargalo. Ela me abraçou pela cintura e conduzia a dança como se fosse o homem e eu a mulher. Tropeçamos no sofá e quase nos machucamos feio. Demos boas gargalhadas. De repente ela se levantou e perguntou que horas eram. Respondi que não fazia a mínima idéia. Ela olhou um relógio que havia sobre a mesa ao lado da televisão gigante. "Uma e meia quase, tenho que ir. Combinei com Paulo que ia chegar antes da meia-noite no Gates", exclamou Samira. Abracei-a com força e dei um beijo. Sua boca macia parecia uma fruta vermelha, molhada e carnuda. Deitamos no sofá, ela por cima, cobrindo o meu rosto com seu cabelo, seu cheiro, seu gosto. Parecia um sonho, nada
daquilo poderia ser real. Continuamos a nos beijar por um longo tempo, que pareceu uma doce eternidade. De relance olhei a mesa e já não havia ninguém lá. Nem sinal também de Raissa e Roberto. De repente, Samira se arrastou até o chão, dizendo que não se sentia bem e vomitou sobre o tapete da sala.
    Quando estava tentando ajudá-la a se levantar, ouvi o barulho da porta se abrindo. Era o marido de Raissa, que entrava com várias caixas de cerveja nas mãos. Pedi desculpas, expliquei que ela havia bebido um pouco além da conta e levei-a ao banheiro. Quando entramos, vimos uma cena um tanto chocante, mas ao mesmo tempo pueril. Roberto estava deitado no colo de Raissa, sugando o seu farto seio, como um recém-nascido. "Freud explica", provavelmente diria Samira, se pudesse. Avisei a Raissa que o milico havia chegado. Ela passava as mãos sobre o cabelo de Roberto e disse apenas: "ele estava chorando feito uma criança desamparada. Fiquei com pena...". Lavei o rosto de Samira na pia, que pareceu recuperar os sentidos. Depois levantei Roberto e coloquei-o embaixo do chuveiro. Fiquei imaginando como iria sair daquela situação. Voltei à sala, onde o marido-milico estava, desolado, sem conseguir acreditar naquele cenário de destruição: móveis revirados, uma garrafa quebrada e vômito no tapete. Perguntou como estava a garota e respondi que já estava bem melhor. "Onde está Raissa?", quis saber. Disse que ela havia saído para dar uma carona a uma amiga, que morava próximo, mas que já voltaria. Samira saiu do banheiro, ainda tonta. Pedi ao marido-milico-simpático que me
ajudasse a levá-la até o meu carro. O militar insistiu para que ficássemos, mas ela foi enfática e disse que queria ir embora imediatamente. Pediu que ele a ajudasse. O marido-milico não perdeu tempo, carregou-a, heroicamente, e desceu três lances de escada, achando-se o mais cavalheiro e mais poderoso de todos os homens.
               Meu carro estava estacionado um pouco afastado, dando tempo suficiente para Raissa descer com Roberto até a garagem e levá-lo de carro. O plano havia dado certo. Vencemos a guerra. Senti-me um verdadeiro general, um estrategista. Levei Samira até a sua casa, que ficava do outro lado da cidade, ainda semi-consciente.
               Muito tempo se passou e nunca mais encontrei o grupo, nem Samira. Mas tenho quase certeza que Raissa ainda mantém a mesma escovinha no cabelo e cozinha seus pães de queijo para festas e encontros dos amigos do marido. Que ela e Roberto se encontram pelo menos uma vez por semana em algum quarto alugado. Que Juliana, Marina e Cláudio estão morando juntos, num triângulo amoroso, sem grilos. Que um dia encontrarei novamente Samira. Mesmo que seja na imaginação, o lugar ideal para todos os tipos de aventuras, fantasias, devaneios e transgressões.

Ricardo Borges

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