DE LOIVA
Eu, Loiva, fazia perguntas. Inquietas e pululantes perguntas, enquanto minha boca jazia muda. O que vai ali? O que está a dizer? Que rio esconde, que rio emerge? E assim sempre perguntava, silenciosa, mirando nos olhos de Jorge. E o pior: teimava em achar respostas aflitas; garimpava sentidos dolorosos, ora me perdendo em redemoinhos febris, ora me iluminando em sorrisos lívidos. Não, Jorge não mente, ele diz a verdade, viste? Os olhos dele estão translúcidos e a pele do rosto seca, isenta de quaisquer gotículas nervosas, denunciadoras de ardis; a boca tranqüila, doce; os vincos relaxados. Sim, Jorge não mente. Haveria de beijar os pés de Santo Expedito àquela noite – o Santo dileto! – e o agraciar com uma flor bonita, afinal, concluí, o marido ainda me era fiel. Contudo, a verdade e a mentira latejavam impiedosas em minha cabeça, numa ciranda incansável, que apenas reduzia a velocidade para logo rodopiar ainda mais vertiginosamente.
Jorge não suspeitava do inquérito (subterrâneo). Nunca vira o fluxo bizarro jorrar de meus lábios. As golfadas de um inquérito ardido e nunca expelido, completamente silente e podre. A minha boca desmaiada e feroz. Somente meus olhos indagavam, sôfregos e dissimulados. Jorge... Jorge... Ele não suspeitava. E nem mesmo meu olhar vítreo, a lhe espetar as pupilas, insistente e penetrante, lhe revelava minha natureza insegura e insensata. Não suspeitava. Inocente, ele. Puro.
A pureza truculenta de Jorge. Uma pureza cruel: de mente, de cognição,
de sensibilidade. Uma certa atrocidade de entendimento. Uma certa
violência de incompreensão, de ausência apática.
E não havia olhar meu que Jorge pudesse
apreender.
Foi nesse enredar de fios toscos, num misto da lenta truculência de Jorge e de minha insidiosa desconfiança, que nossa história se fez. Salvo as divergências mais agudas (alianças semi-áridas), a diferença fundamental entre nós se reduzia a uma só: Jorge desfrutava de um nutrido bem-estar, enquanto eu me corrompia numa ciumenta e persecutória dança, que a cada passo mais me enlouquecia. Enredados estávamos, em nossas posições fixas (papéis amarelados) e justas como nós de corda. Mas a tensão ainda haveria de aumentar. Jorge, de ambição altruísta, quis multiplicar seu salário para poder construir a morada de nossos sonhos: a que me agradaria. Uma casa maior, que pudesse abrigar os filhos futuros, que pudesse convidar ao desfrute de bons momentos em cômodos aconchegantes; num delicioso jardim, que generosamente se estenderia pelo terreno; numa produtiva horta, viçosa e saudável; numa formosa varanda, que se abriria para uma linda vista.
Uma casa que oferecesse conforto e segurança, que acomodasse nossos anseios mais preciosos e sagrados: um ninho. Pois era nesse sonho (sonho-ninhal) que Jorge ocupava sua mente, planejando detalhes, fazendo e refazendo projeções e cálculos. Chegara, finalmente, não sem muito esforço, ao que parecia ser o construto perfeito. Faltava-lhe, porém, uma parte da verba necessária. E foi aí que ele decidiu se ocupar, cada vez mais intensamente, no trabalho, a fonte única de sua renda, em extenuantes, porém recompensadoras, horas-extras. Nada me contou. Queria me fazer uma surpresa. Ah, Jorge, seu tolo!
Chegava em casa cansado, mas feliz, e eu me aproximava cheia de suspeitas fantasmagóricas. Ai, ele anda tão cansado! Agora é todo dia esse atraso descabido. Vê como a face dele está caída! O que esconde? O que Jorge anda a fazer, meu Santo? Ai, que não suporto essa agonia! Sempre calada, indagava incessantemente a meu marido. Munida de uma insegurança torturante, submersa em meu olhar incontinente, temendo um ruir de alma, extravasava perfurantes e infinitos porquês. Porquês que não atingiam a Jorge, mas trespassavam meu próprio cerne trêmulo. Como o investimento financeiro de Jorge na nova casa fosse a médio prazo - envolvendo sua dedicação quase exclusiva ao trabalho e significativos depósitos mensais em caderneta de poupança - qualquer pessoa perceberia que esconder da esposa um tal projeto – e suas implicações na vida do casal – não seria uma boa idéia. Mas Jorge não percebeu. Mais uma vez, cultivando o lado obtuso e narcíseo de sua mente, não suspeitou do risco a que nos expunha. Ademais, seu investimento em tempo e energia, rivalizando com seu investimento financeiro, era ainda mais urgente e frenético, impondo uma mudança drástica no ritmo do dia a dia. Nesse torvelinho cotidiano, Jorge se via poupado de preocupações mais refinadas. Simplesmente não suspeitava...
Chegava em casa sempre tarde, apenas dizendo que o serviço aumentara na firma, que se via obrigado a trabalhar mais e, ao final de suas desculpas, que já tomavam ares rotineiros, sorria incrivelmente satisfeito. Não era preciso mais para que eu, Loiva Lis, delirasse. Atingia o limiar de minhas agonias, agora justificadas pela súbita mudança de meu marido, que nunca fora de ficar fora de casa mais do que o tempo estritamente necessário. Jorge tem outra, é certo que sim! Quem haveria de ficar tão feliz longe de casa? Vê como sorri, pleno de entrega à volúpia. Ele me traiu, o maldito! Não há dúvida que me traiu! E a revolta agitava-se dentro de mim, tempestuosa, carregada de mágoa. Meu olhar se tornava, aos poucos, uma voragem furiosa e mal contida, salpicada de centelhas insultantes. As indagações de outrora haviam cessado para dar lugar à ira. Contudo, nem uma gota de palavra revoltosa respingara de minha boca seca. Tinha medo. Um medo sufocante. De alguma forma aprendera que acusar – e acusaria tanto! – não resolveria meu desamparo e ainda destruiria a pouca alegria que ainda gozava na vida. Por isso, calei-me mais do que nunca e baixei os olhos diante de meu marido, para que Jorge ficasse ignorante mesmo, de tudo que me ocorria. Eu sei, sei tudo, mas tu nunca soubeste e agora mesmo é que não saberás!
O tempo se arrastou, agonizante, e chegou a uma quinta-feira qualquer. Um mero dia da semana, um dia limítrofe... O telefone tocando... Quinta-feira chegava – uma quinta qualquer, boiando no calendário – e então eu o traí. Traí. Jorge não chegava antes das vinte e duas. Dois patinhos na lagoa. Arrumei-me, decidida. Vesti uma saia justa de couro preto, estiquei cuidadosamente a meia-calça sedosa, pus a jaquetinha curta, colada ao corpo, e calcei o elegante sapato de salto agulha. O traje completo me emprestando um ar de motoqueira selvagem. Apliquei a maquiagem que ressaltava a beleza de meus traços e fui para a rua. Já sabia exatamente o rumo: o barzinho da moda. Não foi difícil encontrá-lo. Rogério ligara... Ligara novamente. Uma voz gostosa, elogios suaves, sinceridade macia como pétalas de rosa e um convite irrecusável. Não precisaria ir além, não pretendia estar sozinha com ele, não, só conversar, nada mais. Mas de repente lá estávamos, dançando; o mundo piscando loucamente; a música pulsante entrando pela pele; os goles de cerveja gelada... Os beijos no escuro... Tudo que temia fiz. Tudo que temia que Jorge fizesse, fiz, sem culpa.
Não foi difícil, não pretendia... Uma vingança completa! Deixei Rogério – o amásio de todas as horas reprimidas – depois de tudo, tudo que tanto queria, e fui para casa sentindo-me leve, resgatada, redimida: vingada! Mas era uma vingança estranha aquela, não havia mais raiva alguma. Nem na hora do encontro. Não havia raiva de Jorge. Nem mesmo um gesto realmente premeditado... Simplesmente acontecera, no doce embalo de uma quinta à noite, como quem se permite um intenso e irrefreável gozo; como quem se concede atravessar uma fronteira. Um suave passo além, um envolvente tango soando, rasgando meus disfarces no palco da noite.
Havia deixado um bilhete para Jorge. Verdade. Carla brigou com Sílvio e precisa de mim. Volto logo! Verdade. Mas não pensei realmente, não pretendia. Um álibi, como quem faz uma ameaça boba. Se você fizer isso, eu nunca mais aquilo. Um álibi-conversa-fiada. Um álibi... PERFEITO! Cheguei em caso perto da uma e meia. A lua ia alta. Cedo ou tarde demais. Encontrei Jorge na cama, muito quieto. Não estava dormindo. Claro que não, não roncava. E, subitamente, fiquei olhando aquele homem sobre a cama, imóvel, estendido. Aquele que era meu marido há tantos anos, aquele que trazia o sustento para dentro de casa, ainda e sempre. Aquele que amava. Aproximei-me devagar. Jorge? Jorge, querido? E ele voltou-se para mim, os olhos abertos, sonolentos. E eu vi: a mais pura inocência. Ele não suspeitava. A pureza truculenta de Jorge, estranhamento a meu favor, pela primeira vez.
O olhar inocente de Jorge. Límpido e puro. Ele nunca me traiu!
O pensamento fulminou a consciência, como um holofote brilhante
e insano, a focar, finalmente, os fatos. Os fatos crus estampados
nos olhos de Jorge. A verdade reluzia, depois de ter vagado zonza na escuridão.
Jorge era fiel. Meu marido nunca me traiu. Nunca! Então o
beijei ternamente – aos olhos maritais injustiçados. Beijei
os olhos de Jorge, que selou as pálpebras sonolentas. Beijei
os olhos que não mentiam, os olhos puros de Jorge. Querido.
Querido... A paixão inflamando aos poucos e Jorge achando, em sua
cálida ignorância, que eu queria sexo. De uma certa
forma queria, porém, Jorge não suspeitava da magnitude
de seu excitado gesto: ele me perdoava. Da única forma que
uma esposa em falta pode ser perdoada pelo marido: com sexo. Seu
sêmen sacramentado pela igreja, abençoando minha lascívia.
Jorge suplantava a Rogério – o amásio generoso, de
fluidos férteis – como que lavando toda traição.
Jorge. Jorge... Jorge! Amém...
DE JORGE
A casa nova ficou uma beleza. A varanda - com suas cadeiras de vime e confortáveis almofadas - rodeada de margaridas e sempre-vivas, oferece um recanto ótimo e uma vista maravilhosa do pomar e das montanhas mais ao fundo. Plantei laranjeiras, limoeiros, pitangueiras e videiras. Tratei com o senhor Adilson, o caseiro, o cultivo de uma horta, suficientemente grande e diversificada para nos fornecer verduras e legumes frescos o ano inteiro. Estamos na época das ervilhas, que se consumidas logo após a colheita, são formidáveis! Tempo de fartura! Internamente, a casa ficou muito bonita, confortável e aconchegante. Exatamente como sonhávamos. Não disfarço um sorriso feliz e orgulhoso, enquanto miro - como um Rei em seu castelo - pela grande janela da sala de estar e vejo Loiva passeando pelo jardim. Valeu a pena cada centavo empregado na casa, cada gota de suor derramado... O difícil mesmo foi perdoá-la.
Acho que nunca esquecerei o olhar enlouquecido de Loiva, me vigiando noite e dia. Aquela suspeita sufocante pairando entre nós. Tive medo de que Loiva me atacasse, talvez à noite, enquanto eu dormia. Tive medo de que finalmente ela perdesse a razão por completo. De alguma forma eu percebia que não havia palavra sábia a ser dita, não havia diálogo que pudesse acalmá-la. Tínhamos caído numa cilada.
Eu, vítima do amor maduro, incapaz de abandoná-la na hora difícil, incapaz de buscar refúgio, ainda que minha mente e meu corpo denunciassem o perigo. Ela, vítima de uma febre, endoidecida, pronta para atacar o peito de quem mais a amava. Aquele olhar pontiagudo traspassando a tudo.
Mas eu a amava, simplesmente a amava e tinha esperança. Tinha esperança de que se fosse paciente e cauteloso, ela melhoraria e voltaria a ser a mulher que sempre fora. Só precisava ter um pouco de paciência e tudo daria certo.
Resolvi dedicar minhas energias num projeto pessoal. Planejei nos mudarmos para uma linda casa, cheia de paz, onde reencontraríamos a felicidade. Uma casa dos sonhos, exatamente como queríamos. Não contei nada a Loiva. Cada vez que me aproximava dela uma sensação desesperadora me inundava. Cristo, eu não podia falar! Nenhuma palavra que dissesse sossegaria seu espírito delirante, nenhuma palavra dita a consolaria. A essência de Loiva estava desnorteada! Cada vez mais.
Planejei a construção meticulosamente, levando em conta cada gosto de Loiva. Dava um jeito de descobrir do que ela mais gostava, seja comentando um detalhe arquitetônico na rua, seja elogiando algum material específico e registrando seus comentários. Tabuão é ótimo para os quartos. Ah! É sim, nada melhor! - concordava ela. E assim eu ia delineando o projeto conforme seus desejos. Claro que também incluí na casa o que particularmente me agradava, não esquecendo de um escritório para meu uso; de uma mini-oficina de consertos, anexa à garagem; de um recanto com churrasqueira e, por fim, não esquecendo de um espaçoso viveiro, onde uma variedade de passarinhos bem viveria e procriaria. Este sonho de casa era a única coisa que me inspirava alegria. A nossa casa, mas acima de tudo, uma casa que agradasse a Loiva. Sim, teria jardins floridos para que ela pudesse repousar sua vista, teria um pomar e hortaliças viçosas. Uma ampla varanda e uma confortável sala de estar. A decoração que escolhesse. Nosso quarto, nosso quarto convidativo, luzes suaves, do jeito que gostávamos.
O projeto da casa me ocupava intensamente e as pequenas conquistas diárias,
rumo a construção final, me animavam a prosseguir. As vezes
chegava em casa feliz, embora esgotado, mas invariavelmente deparava
com um muro
impenetrável, o olhar acusatório de Loiva, insano. Isso
foi, pouco a pouco, minando minha alma, envenenando meu espírito,
até que não pude mais ficar sem reação.
Precisei tomar uma atitude.
Chamei Mauro, amigo recente, mas de confiança. Mauro ainda não conhecia Loiva, e talvez por isso, pude contar tudo a ele, sem omitir nenhum detalhe. Desabafei, como quem revela um segredo à beira do precipício. A verticalidade tremenda esperando que eu resvalasse. Um passo rumo ao estrondo. Quase posso ouvir a minha voz àquela noite: Mauro, ela me acusa vinte e quatro horas por dia, e não diz uma palavra sequer. Mas o olhar está lá, me consumindo, me devorando aos pedacinhos.
Pois Mauro me ouviu dizer que queria salvá-la, contudo, não sei mais dizer se era a ela a quem eu salvava ou se era a mim mesmo. Se ela afundasse na sua loucura, também minha vida se afogaria junto. Foi então que fiz a minha própria insensatez. Autorizei Mauro a fazer o que fosse necessário para ter Loiva de volta. O que fosse necessário. Não se passaram duas semanas e Mauro telefonou para nossa antiga casa, enquanto eu estava fora, trabalhando, e convidou Loiva para sair. Saíram, foram a um barzinho tomar chope.
Naquela noite, cheguei de volta a casa e encontrei uma estranha e perniciosa paz. Silêncio, só o zumbido constante da geladeira orquestrava uma fria melodia. Loiva não estava. Um bilhete que soava falso, colado à porta da geladeira, me dava nos nervos. Liguei a secretária eletrônica e ouvi a voz mal disfarçada de Mauro, sedutor e carinhoso, dizendo ser Rogério. A raiva assomou grande, mas era tarde demais. O desespero rondava.
Fui deitar em nossa cama esperando a morte. Não sei quanto tempo se passou, mas ouvi a porta batendo e Loiva apareceu. Nunca vou esquecer. Loiva estava curada. Nunca vou esquecer os olhos desanuviados, me fitando com amor na penumbra; a voz carinhosa, cheia de compreensão. Toda a desconfiança desaparecera, toda a ira amarga, todo o ódio corrosivo que quase nos destruíra. Todas as sombras haviam sido removidas de seus olhos sãos. Dei graças! Mil vezes dei graças.
Então, quando ela veio me beijar com os carinhos mais doces deste mundo, não quis saber de nada. A minha amada voltara. Deus! Eu podia sentir o cheiro de fêmea usada no ar, eu podia sentir a umidade do pecado de Loiva, mas nada, nada me impediria de tê-la de volta.
Deus, eu a amei ali mesmo. Paixão sem volta.
Não demorou e nos mudamos para a casa nova, meio às pressas, é verdade (escapando da danação). Nunca mais procurei a Mauro e ele também não me procurou. Ainda bem. Apesar de tudo, tenho de reconhecer que ele estava certo. Loiva precisa se distrair de vez em quando. Estamos felizes agora. O senhor Adroaldo trabalha bem, é absolutamente discreto e dedicado.
Marta Rolim