Hoje acordei com um desejo vingativo. O relógio não marcava o despertar do dia, a madrugada preguiçosa sonolenta no seu despertar me convidava a ficar quietinho por entre as cobertas macias... Mas, ainda dormente, sou obrigado a receber o impacto proveniente de um pulo da cama macia para o tapete frio... Não assim não pode ser! Hoje mudo esta cena! Mas, quem sou eu para comandar o corpo que me possui?
Esta vida não tem graça, disse para mim mesmo. Pois, reclamar para meus irmãos não adianta mais. Me sinto um estranho no ninho...
Pensam que é fácil servir de suporte para um corpo que possui 1.75 m, e de vez em quando, inventa de dar uma de perua usando saltos altos?
E os dias que sufocado necessito ficar agasalhado com meia e tênis, correndo por 1 hora, enquanto lá fora o sol está escaldante?
E as noites que tenho que ensinar passos de danças aos gringos? Ao invés de um para cá, dois para lá é um para cá, duas pisadas...
Pior ainda é quando sou usado, como cobaia, para testar se a água está gelada ou fervendo na banheira, meus irmãos e eu sempre somos os primeiros a dizer: bandeira verde ou vermelha...
Sem falar dos esmaltes, das acetonas, das pinças... verdadeiro martírio!
E apesar do tanto que me esforço, por vezes me sinto rejeitado, escondido, solitário...
Por tantos desleixos e abusos para comigo, comecei a sentir inveja... e a alimentar um desejo de vingança.
Há noites de glamour, que minhas irmãs - as mãos - recebem carinhos, apertos sinceros, beijos apaixonados, estão sempre expostas e enfeitadas com anéis de brilhantes, de ouro...
Enquanto isto o ''burro de carga'' aqui tem que ficar escondidinho dentro de um salto alto, espremido, sem beijinhos, sem o brilho dos holofotes, sem os flashes das colunas sociais, sem a visão do salão, sem sentir o aroma dos pratos exóticos servidos nos restaurantes, sem sentir a brisa da noite penetrando pela janela do carro, sem poder contemplar a lua...
E quando fico ouvindo o tec-tec-tec-tec do computador, onde minhas irmãs, gozam de alegria em uma frenética dança por sobre o teclado...? Ah! como sinto inveja de auxiliar a criar as poesias e as prosas, que elas constroem em um constante frenesi com a caneta ou o teclado...
Geralmente nestas horas de abandono, sou obrigado a ficar parado, dormente, esquecido na escuridão e na frieza do assoalho de cerâmica...
Isto é vida questiono eu? Por estas e por tantas outras razões, que hoje resolvi virar a mesa, chutar o balde, beijar o asfalto. Só, que não sabia que o impacto iria me deixar engessado, quebrado, escondido, dorido...
Quem sabe agora a dança por sobre o teclado de minha irmãs tenham um sabor de compaixão...? Quem sabe ganharei pelo menos um beijinho...?
Mesmo assim, morrendo de dor, me encontro feliz. Pois hoje quem comanda este corpo sou eu! Pelo menos fui merecedor de uma crônica! Nada de corridas, nada de danças, nada de esmaltes, nada de saltos... E... a cama quietinha, gostosa, macia, me espera !
Angela Bretas