O chá psicodélico

“Será que é mesmo nesta quadra?”. Felipe olha a placa. 306/307 Sul. Tenta localizar a barraca de frutas. Dá a terceira volta no balão e finalmente descobre a barraquinha, próxima à comercial, embaixo de uma grande árvore. “De carro tudo fica mais fácil. Nenhum cana por perto, maravilha”. Encosta o carro, pega a sacola a lista de compras e desce.
— Quero uma dúzia de laranjas, bananas, tomates... tá tudo aqui na lista”.
O vendedor lê e começa a selecionar os produtos. Felipe olha para os lados, para se certificar de que não apareceria nenhum freguês.
— E a parada?
— O quê? Espanta-se o vendedor.
— O Márcio disse que tu vende.
— Foi o Márcio quem te mandou aqui?
— Foi.
— Quantos anos tu tem garoto?
— Tô com a grana – mostra o dinheiro.
— Tá bom. Quanto vai ser?
— O mesmo que o Márcio leva.
O ambulante pega um pacote enrolado em jornal e coloca, junto com as frutas e verduras, dentro da sacola de Felipe.
— Por que o Márcio não veio?
— Ele foi fazer concurso.
— Concurso?
— É, pra polícia federal.
— Essa é boa – ri mostrando a boca banguela e um dente de ouro na frente —Imagina se vão deixar aquele maluco entrar. Tu é irmão dele?
— Não, sou primo.
— Parece pra cacete. Diz pr’aquele sacana me ligar.
— Tá.
— Polícia federal... – franze a testa o vendedor.
 
 

Felipe leva a sacola para a cozinha e coloca sobre a mesa. Abre o pacote e sente o cheiro. “Essa é da boa! “ O celular toca. Na pressa, deixa cair parte da erva sobre a mesa, e sai à procura do telefone.
— Alô.
— Então?
— Já fez a prova?
— Foi moleza. Chutei quase tudo na letra “e”, de erva. Pegou a parada?
— Peguei. Tá na minha mão.
— Vou passar tipo no final da tarde aí. Posso chamar a turma?
— Acho que não vai dá não, véio...
— Pô, tu não disse que teus pais iam viajar, véio?
— É, véio, mas a minha vó convidou uma velharia. Ela tipo vai aproveitar que os meus pais estão fora pra fazer a farra dela. A velha não perde tempo!
— Então a gente se encontra na casa do Zeca.
— Falô. Ah, o carinha das frutas disse que quer falar contigo, véio.
— Tu não falou pra ele que eu tô fazendo concurso pra polícia, falou?
— Falei.
— Puta merda! Como é que tu fala uma coisa dessas, véio? O Dente de Ouro vai contar pra todo mundo, véio. Vai queimar meu filme legal!
— Pô, foi mal, véio.
— Ah, quer saber, não tô nem aí. Vou montar meu próprio esquema. É só eu passar. Espera só.
— Só.
— Aí, véio, vou levar umas minas. Vai ser demais.
— Pô, véio, demais.
— Falô.
— Falô, véio.
 
 

Dona Isadora caminha lentamente pela quadra, apoiando-se na bengala Há dias sofre com uma forte dor na coluna, mas prefere não reclamar pra ninguém. Ela odeia médicos e, principalmente, o cheiro dos hospitais. Nos últimos meses, começou a desconfiar que sua filha e o genro querem levá-la para um asilo. A desconfiança pouco a pouco se transformou em convicção e idéia fixa. A viagem do casal pra Caldas Novas seria a prova definitiva. “Por que não me levaram? Disseram que é uma segunda lua de mel. E daí? Na primeira eu fui! Na verdade, eles não me suportam mais. Pra eles, sou um fardo, eu sei. E não vai demorar muito até que me botem num asilo, como aconteceu com a Margarete, do Bloco B. Mas se eles pensam que eu vou aceitar que façam isso comigo, estão muito enganados. Eu não sou um sofá, que se joga fora quando fica velho”, resmunga Dona Isadora, sacudindo a bengala.
— Aquela velha é doida de pedra. Imagina que uma vez ela quase acertou uma bengalada num cachorro que latiu pra ela. O cachorro, um pequenês, morreu pouco tempo depois. A dona ameaçou até processar a velha – diz o zelador, Seu Everaldo, para Cremilda, empregada do 408.
— Ué, mas tu não disse que ela “quase” acertou o cachorro? Como é que ele morreu então?
— Parece que foi de susto. Esses vira-latas de madame são muito sensíveis. Recebem mais cuidados que muita gente. O bicho foi enterrado num caixão chique, com direito a velório e tudo mais. A dona ficou de luto mais de um mês.
— Tu tá inventando história. Onde já se viu, velório de cachorro?
— Aqui não é como no Piauí não, onde o povo come cachorro, pra não morrer de fome.
— Eu sou de lá e não conheço ninguém que já comeu cachorro! Cruz-credo!
— Diz que na Coréia o povo come cachorro.
— Credo! E onde é que fica a Coréia?
— Fica lá pras bandas do Japão.
— E como é que tu sabe disso?
— Vi na televisão.
— Deve de ser esquisito.
— O quê?
— Comer carne de cachorro no restaurante. Já imaginou, pedir pro garçon trazer um prato de cachorro assado! Será que eles comem o rabo também?
— Ora, tu faz cada pergunta! Sei lá se comem o rabo! E por que tu não vai trabalhar, hein?
— Calma, eu, hein! Foi só uma pergunta. Olha lá, a velhinha tá pedindo pra abrir a porta.
— Melhor abrir logo, antes que ela quebre a porta.
— Ou mate outro cachorro de susto.
 
 

— Aí, vó, aonde a senhora foi? A mamãe ligou, perguntando como é que a gente estava. Ela disse que só vão voltar domingo à noite. A gente vai ter que se virar. Vou pedir uns sandubas pr´agente – diz Felipe, assistindo à TV, na sala.
— Sandubas?
— É, Trash Burg com spring diet.
— Eu não posso essas porcarias. Vocês querem mais é que eu morra, não é?
— Que tal uma pizza?
— Prefiro ficar sem comer.
— A senhora ta rebelde, hein?
— Olha lá como fala comigo, moleque!
— Não quis ofende. Foi mal, aí. Não estressa. Vô tomar banho.
— E já vai tarde.
— Eu, hein, vó. A senhora tá muito nervosa. Por que não toma um calmante?

Dona Isadora sente ímpeto de arremessar a bengala na cabeça do garoto. Mas percebe que ele tem razão. Brigou sem motivo, está mesmo muito irritada. Um chá seria ótimo pra acalmar. Poderia servir também aos convidados, que devem chegar dentro de poucas horas para o jogo de baralho. Vai à cozinha e descobre sobre a mesa o que parece ser uma erva. “Tem um cheiro esquisito. Felipe deve ter comprado. Até que é um bom garoto. Os pais é que não dão muita atenção. Desse jeito vai acabar virando um vagabundo. Huummm. Essa planta deve dar um bom chá. Vou usar toda, pra ficar forte. Chá só serve se for bem forte”.
 

— Vó, abre a porta vó. Deixa eu sair! – grita Felipe, desesperado, trancado no banheiro.
— Eles não dão atenção pra gente. Não ligam a mínima pr´agente. Querem nos colocar no asilo. Viram o que aconteceu com a Margarete, que sempre foi uma mãe dedicada? Pra quê? Pra depois virar carne moída no asilo. É o eles fazem com os velhos. Vão moer a nossa carne pra fazer cachorro quente, eu sei! Eles pensam que eu não sei, mas eu sei!!
— Calma Isadora, olha o coração — diz D. Lurdinha.
— Abre essa porta!!
— Acho que escutei alguém gritar, Isadora —diz D. Margarida.
— Eu também, diz Seu Pedro.
— Deixem que gritem. Agora eu sei o que temos que fazer. Hoje eu tive uma visão...
— Uma lição? Que lição, do que você está falando? Pergunta D.Lurdinha.
— Foi depois que eu tomei esse chá. O chá que São Jorge trouxe. Ele apareceu no meio da cozinha, montado no seu cavalo branco, com uma linda armadura e segurando uma lança. Disse pra eu não ter medo e ofereceu este chá. Bebam, bebam tudo! – diz D. Isadora, servindo chá, com as mãos trêmulas.
— Foi então que eu vi! Eu vi o caminho, no meio de um bosque, feito de pedras douradas. Tudo brilhava ao redor: as flores coloridas, as árvores retorcidas, as borboletas. No céu vermelho havia duas luas. Parecia um sonho, mas eu estava acordada e via tudo. De repente, apareceu um coelho, tocando uma flauta. Era uma linda melodia, que me deu vontade de dançar e girar, como ele. Segui o coelho, que me levou a um lugar maravilhoso, um verdadeiro paraíso, com rios, cachoeiras e um imenso arco-íris, que parecia de vidro. Não sei que lugar era aquele, mas me lembro de ter visto uma placa, onde estava escrito: GO 118. É um aviso do meu santo protetor!
— Um disco voador? Onde? — pergunta D. Margarida, sem conseguir parar de rir.
— Socorro! Alguém, abre a porta! —grita Felipe.
— É pra lá que devemos ir! Estão me ouvindo! Lurdinha, desce daí – diz D. Isadora, puxando a amiga, que tentava subir em cima da mesa da sala – Parem com isso! Escutem, isso é um sinal. Não entenderam. Temos que ir pra lá. Lá é o nosso lugar. É lá que vamos morar, longe de todos esses loucos e ingratos. Pedro, você, que já foi motorista, vai nos levar até lá. Vamos, não temos tempo a perder.
— Gostei desse canal...
— A TV está desligada, Pedro! Vamos, levanta, seu molenga! Está aqui a chave do carro – diz D. Isadora.
— Vó, foi brincadeira! Vou pedir comida chinesa! – grita Felipe, espancando a porta do banheiro.
 
 

“Não quero nem vou virar carne moída. São Jorge e o coelho me mostraram o caminho. Isadora”.

Felipe lê o bilhete, sem conseguir entender nada. O que vai dizer para os pais? Que sua avó pirou de vez? Que foi seqüestrada e deixou um bilhete cifrado? O carro também sumiu. “Será que ela foi mesmo seqüestrada?”. Felipe não consegue raciocinar direito, pois está faminto e teve que dormir no banheiro. Só conseguiu abrir a porta no início da manhã, usando um grampo. O telefone toca.

— Alô!
— Seu viado! O que foi que aconteceu? Liguei milhares de vezes ontem e ninguém atendeu. Fiquei com cara de otário na festa. Sorte que o Zeca tinha cerveja e uns bagulhos. As minas ficaram alucinadas, véio. Foi uma loucura! Tu não sabe o que perdeu. Por que tu não foi, véio?
— Tipo assim, véio... acho que a culpa foi de São Jorge...

Ricardo Borges

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