Desencanto

Ainda absorto em seus pensamentos, Marcelo dobrou a esquina e deu de cara com o bar aonde tinha marcado de se encontrar com os amigos do tempo de faculdade de jornalismo. Teresa foi a primeira a avista-lo e já acenava com os seus longos braços dourados.
 Rui sorria, Melissa sorria, Teresa sorria. Ele sem dúvida era bem vindo e isso o incomodou de imediato. Teresa pulou da cadeira para um caloroso abraço e um beijo no cantinho da boca. Melissa, ainda muito bela, também o beijou com júbilo.
- Marcelito, achei que você não viria. Quase duas horas de atraso. Já estávamos pensando em ir embora.
- Tive problemas.
Rui também abraçou o amigo, com direito a tapinha nas costas.
- E aí meu camaradinha. Chegou atrasado para já pegar a gente bêbado?
- Eu conheço vocês. Faltam muitas horas de cerveja para deixar vocês bêbados.
- Depois de seis meses de sumiço e pelo jeito que você falou comigo no telefone, vai saber se você ainda lembra de nós.
- Até parece Teresa. Você só me pegou em um dia ruim aquele dia. Aliás dois, porque meu dia hoje não foi muito legal. Mas vamos começar os trabalhos. Garçom! Traz mais um copo e outra garrafa!
Quando terminou a frase, todos os olhares estavam nele. Todos pareciam tão animados com sua presença, esperando que Marcelo contasse as novidades de sua vida, ou loucos para que ele perguntasse pelas suas.
Como Marcelo não se entusiasmava por nenhuma das duas idéias, ele simplesmente baixou os olhos e começou a olhar para seu sapato gasto. Mas o gesto manjado não deu certo, e dois segundos de silêncio bastaram para Teresa lhe dirigir a palavra.
- Você tá estranho Marcelo. Tá mais misterioso que nunca. Algum problema com a Clara?
Marcelo, que tinha levantado a cabeça para ouvir a pergunta de Teresa, baixou-a novamente, pois percebeu que ao ouvir o nome de Clara, por um segundo apenas, levantou a sobrancelha, como quem diz “Quem?”. No segundo seguinte lembrou-se de Clara e aí teve vergonha da reação que teve. Para evitar mais perguntas respondeu secamente e emendou uma pergunta para Teresa.
- Terminamos há três meses. E o seu trabalho, como anda?
“Essa noite têm que ser sobre eles. Nem sei o que estou fazendo aqui, com estas pessoas que não vejo mais que duas vezes por ano, mas que parecem me amar quase devotamente.  Não tenho mais vontade de dividir minha vida, mas eles parecem querer dividir comigo, então deixa falarem.”
- Você sabe como é trabalhar na Globo. Pressão o tempo todo. Acho que desta vez eu saio de lá. Não estou agüentando mais.
“Tá bom. Sempre a mesma estória. Vou sair da Globo. Blá, blá, blá.”
O garçom chegou trazendo o copo de Marcelo e mais uma garrafa de cerveja. Rui encheu o copo do amigo, e completou os outros copos.
- Vamos brindar!
- Vamos brindar a que? – falou Melissa – sorrindo e já erguendo seu copo.
- A nós! – Exclamou Rui – E ao nosso passado, claro!
Ao brinde se seguiram discursos sobre a importância da verdadeira amizade que Marcelo escutou desinteressado olhando para o pequeno garçom que perambulava pelas mesas sempre com um sorriso no rosto.
“Que tédio.”
Marcelo ouviu seu nome na conversa, saiu do seu transe e voltou a mesa do bar. Mas os amigos falavam todos ao mesmo tempo e não precisavam de sua ajuda na conversa. Talvez só um murmúrio e um aceno de cabeça.
- Lembra Marcelo?
- Claro – e acenava com a cabeça.
 

Uma velha se aproximou pedindo dinheiro para comprar uma bebida. Empurrava um carrinho de feira cheio de tralhas dentro. Seu aspecto soturno e seu cheiro de álcool destoavam daqueles quatro belos e sadios jovens que tomavam sua cervejinha.
  Educadamente Rui e Teresa desculparam-se com a velha por não ter dinheiro. Ela insistiu, mas como não recebeu nenhuma nova resposta saiu balbuciando palavras ininteligíveis e foi pedir dinheiro nas outras mesas do bar.
  Pediram a conta e Teresa tirou da carteira tickets-refeição para pagar sua parte. Somente os tickets com a inscrição nulo sobraram na cartela depois dela destacar sua parte na conta.
  A velha tinha acabado seu turno pelas mesas do bar e retornou ao encontro deles com seu carrinho a tiracolo. Melissa avisou:
- Lá vem ela de novo.
- Me dá um dinheirinho pr’eu tomar uma pinga.
Marcelo virou-se já armado do seu sarcasmo.
- É seu dia de sorte minha tia. Toma aqui esses tickets – e esticou a mão dando-os para a velha – Você pode troca-los por bebidas.
A velha olhou cabreira:
- O que está escrito aqui?
- Cada um vale três reais minha tia. Você tem doze reais aí. Dá para comprar a melhor das caninhas. Mas preste bem atenção – e tomou um ar de sério - isso só está valendo a partir de amanhã, hein?!
- 12 reais a partir de amanhã?
- Isso aí. Agora vai.
A velha se afastou satisfeita, olhando incrédula para aqueles papelzinhos que amanhã, e somente amanhã, valeriam uma garrafa da melhor caninha. A melhor - ela pensou um pouco mais tarde, quando deitou encostada debaixo da marquise de um supermercado para dormir.
Marcelo virou seu rosto com um meio de sorriso, procurando a cumplicidade dos amigos, mas estes olhavam espantados para ele, sem ter coragem de fazer qualquer comentário.
“Cínicos.”
- Tenho que ir agora. Amanhã tenho que dar aula às 7:30.
- Você tá de carro? Eu te levo.
- Não precisa, eu estou de carro aí.
Marcelo despediu-se de todos e saiu caminhando. Estava sem carro, mas recusou a carona porque já tinha ouvido bastante por uma noite. Estava há menos de um quilometro de casa e uma caminhada não iria fazer mal algum.
O rumor da rua, seus carros, sua boêmia falida, os caminhões que recolhiam o lixo, os mendigos que sofriam debaixo dos cobertores cinzas. Nada disso perturbava Marcelo, que caminhava pela Nossa Senhora de Copacabana, com passos rápidos e certeiros, como dir-se-ia andam aqueles que têm medo de serem notados.
Entrou no prédio e fez questão de tossir bem alto para acordar o vigia que cochilava sobre a mesa do interfone.
“Não vou com a cara desse vigia que dorme em seu trabalho.”
O vigia olhou Marcelo com desprezo, e voltou a se abaixar para seu cochilo.
“Abusado.”
O jornal já estava a sua porta. Notícias de ontem fresquinhas. Pegou o jornal e sem cerimônia o despejou no lixo. Marcelo se imaginou na redação, tarde da noite de dois dias atrás fechando a edição que ele agora jogava no lixo. Seu rosto imaginário foi se transfigurando para o de um antigo colega de faculdade que editava um caderno desse jornal que tinha acabado de ir pro lixo. Sorriu. Abriu a porta de casa, pegou um monte de jornal que se acumulava no canto da cozinha, voltou para fora de seu apartamento e jogou esses jornais também no lixo. Na capa do jornal a manchete dizia: “Qualidade de vida melhora no Brasil: Miséria no país caí 0,3%.”
“Não, decididamente não sou o maior dos tolos. Não mais. Esperança? Desencanto.”
Escovou o dente, trocou de roupa e dormiu. Dir-se-ia finalmente descansou.

Flávio Izhaki

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