A  cor dos teus olhos

Acordou sobressaltada, pensando que era inspiração divina: agarrou a caneta fosforescente da irmã, rabiscando no bloco: “Sonhei com a cor dos teus olhos”, escreveu, e imediatamente pensou em alguém cujos olhos fossem negros, nem foi sonho, você só dormiu, divertiu-se, e em seguida tentou se concentrar no que queria, na sua carta de amor. A sensação do sonho era tão boa, sentia-se tão protegida, como nunca havia pensado que poderia sentir-se. ... “e era tanto azul de mar, em cima e embaixo de mim, até me doía ver uma íris perdida no meio do tom”. Releu criticamente e sentiu vergonha. Talvez fosse melhor não ser tão crítica, imaginou, ou jamais conseguiria passar da segunda linha.  Procurou inspiração na imagem criada com as palavras. “Espantoso, mesmo com medo de nadar, não me amedrontei com essa imensidão. Na verdade, ao contrário, me sentia calma, plácida até, sabendo que enquanto houvesse a crença no abandonar-se, haveria também estar seguro”– o quão maluco é isso? Soava uma frase tão inspirada – mas tinha certeza de que se lesse uma segunda vez não ia entender o começo da própria lógica, seguramente não podia fazer isso com ele.  Posso tentar explicar, pensou. “Como se, por ser tão crédula, o mal não pudesse me atingir. E hoje eu quero te encurralada por suas próprias idéias. Como haviam sobrevivido poetas e escritores até o momento, era algo que jamais entenderia. Nada era tão difícil, tão fácil de cair na mesmice, na pieguice, imagine se gastasse o dia todo para escrever a premissa mais apaixonada e ele não entendesse – pior, achasse que fora tirada de poemas de figurinhas ou coisa que o valha... Bem, não que fosse uma idéia tão terrível, cogitou, e em seguida deu-se conta do tamanho da sua duvida... Podia tentar um tom mais leve, imaginou, e sentou-se na cama novamente: “Sonhei com a cor dos teus olhos. Bom, mais ou menos, você sabe como eles mudam um pouco de cor quando está quente, ou frio, ou dependendo da cor que você está usando ou até do seu humor. Você sabe disso, não?”. Não. Um sonho com a cor dos olhos de alguém deveria ser expresso com mais propriedade do que aquela indecisão, meio vergonha de dizer o que tinha de ser dito. “Sonhei com a cor dos teus olhos. Você...” não conseguiu continuar, e deu-se conta de que a bem da verdade, teria que ser “Sonhei com a cor dos seus olhos”, teus denominava tu, e nesse canto do país ela nem sabia conjuga-lo. Entretanto, isso acabava com sua idéia da frase, o impulso romântico, o que era necessário para que se pudesse transpor o primeiro pensamento da manhã em uma frase cativante? Talvez fosse fome o que a impedia de pensar, e foi até a cozinha. Nem o dia estava ajudando, não havia sol, não havia chuva, nada além de um céu poluído. A chuva costumava inspira-la, nesse dia até o Sol viria a calhar, mas nenhum dos dois deu sinal. Nada de cinematográfico, nada de inspirador. Talvez ele pudesse ajuda-la, e tocou novamente a mensagem da secretária. Sentiu-se feliz ao ouvir sua voz, muito embora ela estivesse atrás de buzinas e música, e contou as horas novamente: faltavam três. Bem, sete, se se considerasse o recado ao pé da letra, mas é claro que depois do sonho que havia tido, não conseguiria espera-lo em casa. Fizera alguns telefonemas e checara o horário do vôo umas trinta vezes, tomando a decisão de ir busca-lo e oferecer-lhe o que quisesse, me leva que eu sou sua. Tomada pela própria animação, sorriu para si mesma.
Depois do banho, vestiu-se com a rapidez com que conseguiu. Considerando-se o número de cabides no armário e sua própria indecisão, até que uma hora não é tanto, pensou, contendo o impulso de voltar uma vez mais para ter certeza de que a saia tinha perfeita combinação com o seu próprio tom de pele, com a blusa, com o batom e com seu estado de espírito, tudo perfeito no dia do sonho perfeito.
Comprou o jornal enquanto esperava; já o havia vindo buscar outras vezes, o portão era o mesmo, sabia até adivinhar com que terno ele estaria, o terno do Último Dia de Negociações.  Ensaiou o próprio discurso, que acreditava ser mais velho que a vida: começaria dando-lhe a folhinha do bloco e explicando a origem da história, e então lhe diria que a perdoasse por haver tardado tanto em se entregar, como qualquer mortal já tinha visto sofrimento e só agora, só agora se supunha repleta o suficiente para poder se dar novamente. Após estar satisfeita com o próprio ensaio, concentrou-se no jornal, pesquisando atividades que pudessem fazer juntos, celebrar como um casal.
Ele a viu primeiro. Entusiasmada, ela não notou que talvez o olhar, justo o olhar!, não estivesse tão completo como ela gostaria. Foi até ele e o abraçou, desculpando-se por estar molhada, “Finalmente choveu, você viu?, eu achei que o tempo ia ficar cinza mas choveu, que bom... e lá, deu tudo certo? Tenho uma coisa para te dar...”
“Espera”. A palavra foi enfática e soou dura em seus ouvidos, como se fosse um estampido no meio da noite, assustador e caótico.  Arregalou os olhos e esboçou uma reação, mesmo sem saber qual seria, mas ele não lhe deu tempo, segurando-a pelo braço e sentando-se na cadeira do café que encontrou. “Por que você está aqui agora?”
“Porque... porque eu descobri que o sonho, porque eu sonhei com você, não, não com você, foi muito melhor, quer dizer, não que fosse pior com você, mas...”
“Por que você está aqui agora?”, e ela finalmente entendeu a ênfase, o agora. Palavra engraçada, agora, pensou.
“Porque eu queria te ver antes de noite,”
“Não, agora”.
Mirou-o como se o estivesse vendo pela primeira vez. Esse tom, essa angústia, a familiaridade com que seus ouvidos identificavam o recuo quase físico do seu tom de voz.
“Como assim?”
“Eu te pedi por isso por mais de seis meses, dia e noite, querendo isso. Por que agora? Por que quando... quando eu desisti de querer?” – a pergunta foi quase um sussurro, os olhos dele, parecendo injetados de cansaço e de algo parecido com dor.
“Você perguntou como foi. Foi bem. Eles me querem lá, dirigindo o escritório central. A proposta anterior era para cá, mas você não queria estar comigo, então peguei a vaga do executivo que deveria ser solteiro, sem laços como você gostaria que eu fosse”. Ele despejou de uma só vez, embora ela estivesse ouvindo como se cada palavra tivesse um eco longo e agudo.
“Mas eu e você...”
“Não existe mais eu e você, Clara. Você não quis, e agora eu não quero. Talvez nunca tenha existido eu e você, porque eu e você estávamos rodeando em volta de você, e agora eu quero ser sozinho, quero existir por mim mesmo. Acabou”.
Olhou o papel e a frase primeira, original de toda sua criação de amor. “Como se, por ser tão crédula, o mal não pudesse me atingir”. E enquanto o olhava, sem ver talvez, pensava na própria imagem, cheia de pena de si mesma, o incômodo da chuva tomada começando a tomar forma, as lágrimas querendo escorrer, a dor espalhada no rosto. Faltava sair correndo. Ironicamente, a certeza de que ele não a chamaria uma segunda vez a impulsionou o suficiente para dar um longo passo para trás. Bastante cinematográfico, conseguiu pensar, e então entendeu porque era essa a imagem transmitida pelo cinema: a grande agulha atravessava sua cabeça, seu tronco, e a fazia ter vontade de correr. Não ia ser engolida pelo clichê, contudo.  Saiu andando tão lenta e altivamente que mereceu as maldições lançadas pelos outros passantes, chegando e indo. Enquanto andava, a bola de papel foi amassada e levada lentamente pela água da chuva, até ser engolida por um bueiro, com sua carta de amor inacabada, tão perto de ter sido declamada, seu dia perfeito e a tinta fosforescente. Horas depois, quando finalmente foi dormir, sonhou com a cor dos seus próprios olhos. E no sonho, sentia-se sozinha, como nunca havia percebido que poderia se sentir.

Letícia Casavella

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