PERGUNTA-ME AMANHÃ

Apetecia-me perguntar-te apenas como estás. Mas leio-te a resposta no olhar fugidio, na busca fingida de nada mais que uma saída daqui. Tens pressa de prosseguir pelo caminho diário, à hora prevista, para outro lado da vida, para o refúgio que te salva dos outros que reflectem o algo de errado que sabes estar a acontecer. Agora. Comigo, amigo, que queria apenas perguntar-te como vais, ou coisa assim.
O risco não vale a pena, lamento. Nem interessa como pretendes lá chegar, a esse porto de abrigo estanque que te resguarda de um prazer antigo que a vida te transformou numa tortura, conversar com alguém. Comigo, talvez. De vez em quando, ou menos até.
Como ficas é que interessa, mas continuo sem coragem para interrogações. Lêem-se perguntas nos gestos nervosos e nos sorrisos de circunstância em abundância que tentam em vão ocultar do teu rosto a firme intenção de fugir deste instante no tempo, momento sem pretexto que não o simples cruzar dos nossos percursos de hoje, coincidência.
Há muito que não te via e nada tenho sabido de ti, como antes nada sabia, afinal. Foi o tempo que me ensinou, anos de aprendizagem, à força, nas retinas de tantos que como tu calharam em sorte no cruzamento de percursos, nas rotinas neuróticas e apressadas de cada um dos que como eu questionaram a vontade comum de acelerar a passada, até qualquer dia e pouco mais. O bastante para que descubramos em directo e em simultâneo que os elos que outrora nos ligaram pingaram liquefeitos, como gotas de chuva num asfalto de verão. Vaporização sazonal das emoções de que acabamos por duvidar, pouco tempo passado sobre os dias em que os caminhos paralelos não deixavam antever o embaraço futuro de um encontro ocasional, sem nada de novo para dizer, excepto até depois. Ou logo se vê.
Poderia perguntar-te, feitas as contas, como és. Não te identifico na ficha pessoal que conservei não sei porquê, abandonada ao pó do esquecimento, ao pé de uma recordação difusa. Como um retrato instantâneo, daqueles onde figuram os sítios que recordamos ao pormenor e as caras cujos nomes nos escapam na hora de as cumprimentar tanto tempo depois. Uma eternidade, bem sei.
Sei que me apetecia perguntar-te como será amanhã, se o destino nos confrontar de novo com a maçada do reencontro casual. Porém, presumo que não conheças a resposta a essa delicada questão. Ainda ontem, por vezes parece, um amanhã significava para nós outro dia carregado de vontade de estarmos juntos outra vez. E agora é o que se vê.
Talvez seja da idade, pensamos. Ou da ansiedade que nos consome, dia a dia, outro igual a seguir. Cansamos a inocência e ela, esgotada, desfalece prostrada no chão de granito que a congela e a impede de nos disfarçar a morte da criança em nós. Adultos vulgares, com pressa e sem jeito para procurar onde se pode ser feliz. Gostava de fazer-te essa pergunta, acredita. O verdadeiro cerne da questão, julgo eu, neste interlúdio da vida em que partilhamos uma estranha percepção do vazio. Cheios de curiosidade, claro está, em conhecer a resposta do outro, de alguém que nos agarre com força pelos ombros e nos sacuda e nos agite a consciência a ponto de a arrancar à hibernação. Ou de a ressuscitar, se defunta, com o choque da constatação. Um milagre no meio da rua, aleluia. Alguém arriscaria, garantida a manutenção da ignorância global por desistência da maioria, a pergunta sacramental.
O que fazes aqui?

Jorge Gomes da Silva

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