Morte seca
“O que tem de ser, tem força.”
(A bagaceira)
Foi lá, mandacarus, baraúnas, cabeças de frade e juazeiros presenciaram a agonia de todo o verde em proximidade com a morte. Lá, onde o desespero da vida não respeita os limites do corpo, o sofrimento fazia a sua mais nobre morada.
Antônio foi ter com José à noitinha. Foi recebido como quem já espera más notícias, pois naqueles dias não havia outra coisa a divulgar. Contou-lhe, então, que dali a dois dias, todas as famílias do povoado deixariam Brejinhos e iriam procurar outra vida em cidade grande. Antônio descreveu a situação de seus filhos e a fraqueza que lhes abatia no corpo e na alma. A fome viria de açoite, deveriam aproveitar as forças que ainda tinham para caminhar, pois vida não existiria ali. Esperava, portanto, de seu compadre, mesmo a contra gosto, bom senso para acompanhá-los.
Dias depois, estavam todos trilhando o caminho certo da morte, morte seca já esperada, que retira o vigor de tudo que ainda teima em viver, e ainda assim teimavam.
Os filhos de Antônio abraçaram a morte antes de chegarem a Pilão, depois de sete dias de caminhada. Foram enterrados em cova rasa de terra seca, que não via outra água senão a que derramava dos olhos daquela gente. Josefa, sua esposa, já não sabia por que caminhava, pois o desânimo já havia lhe abatido ao ver passar tantas covas daqueles que também por ali caminharam.
Alimentando-se de farinha de mandioca e palma picada seguiam. Pelos vilarejos que passavam, despertavam nas pessoas incertezas e a angústia de ter que decidir ficar ou se juntar a eles naquela empreitada, mas se grande era a vontade de ir, maiores eram as forças que os enraizavam e lhes induziam a permanecer naquele lugar. Não sabiam elas se por comodismo ou por completa falta de esperança resolviam ficar agarrados em terços e crucifixos , na esperança descabida de que um dia suas rezas fossem acolhidas.
Os retirantes de Brejinhos eram uma massa suja de gente infortunada que causava mal estar a todos que os viam. Vestidos com trapos, subnutridos, segurando em seus braços os rebentos secos, com a morbidez óssea de seus corpos caminhavam, e de certo não se sabe que inefável sentimento fazia-os continuar.
Dias passados chegaram à fazenda Olhos D’água, diziam que lá ainda havia uma lagoa que não tinha secado. Era final de tarde quando o proprietário os recebeu com comiseração e tristeza, pois só ele foi testemunha de como a necessidade pode tornar as coisas mais simples do cotidiano humano numa das mais importantes de sua vida. Aquele povo desolado nunca irá esquecer aquela cena, o homem disputando lado a lado com o gado semimorto a água barrenta do fundo da lagoa.
A seca, como a morte, com ninguém faz distinção, também ela havia chegado àquelas terras, e se na vida não houvesse entre toda gente outra diferença senão a das virtudes não estariam eles a caminhar ao acaso por aquelas estradas de barro procurando satisfazer as dores do estômago.
 Fazia vinte e três dias de caminhada. José alimentava-se de sonhos, sonhos tão intensos quanto a fome que sentia. Deixou em Brejinhos toda uma vida, lembranças de sua infância desde cedo trabalhando na lavoura de feijão, certeza tinha que lá ia crescer, casar e ter muitos filhos. Nunca esperou mais que isso da vida. Naquele instante pensou no seu cumpadre João, e agradeceu a Deus por não ter se casado e por livrá-lo do sofrimento tamanho de enterrar seus filhos por aquelas bandas.
Triste vida de gente errante que, em outros tempos, mostrava-se satisfeita com o que a terra lhes ofertava, pois dela provinha o contentamento humilde dos homens do campo, que retiram dos pratos a felicidade de uma vida inteira. Hoje, cada um deles carrega dentro de si a certeza de que a angústia que os preenchia naquele momento estaria com eles como anátema. Eram todos iguais, exigiam muito pouco da vida e a vida cada vez mais deles.
Mais uma cruz tinha sido cravada na terra na entrada de Belo Monte, os sonhos daquela criança não foram capazes de abrandar a sua maior quimera, a de voltar sentir a esquecida satisfação que outrora o alimento lhe causava. Mais uma criança de murcha compleição física, tão murcha quanto era a sua vida, foi enterrada pelo descaso.
 Quão grande era a austeridade de espírito daquelas pessoas diante da morte, senhora daquelas vidas, a todos abraçava com indistinta amizade. Mantinham por ela o mais profundo respeito, mas não arrefeciam diante do seu ofício.
Os filhos de Brejinhos caminharam até Humildes, pequeno vilarejo onde conseguiram o de comer, o de beber e se livraram dos trapos que cobriam seus corpos esquálidos. Ali foram assistidos pelos moradores cheios de compaixão pelos sobreviventes da caminhada, dezessete foram enterrados em terras distantes, terras secas. Os habitantes de Humildes reconheciam a fortaleza dos que nasceram no sertão, sob a companhia devastadora do sol que lhes marcou os rostos e a tez, dos que mourejaram na lida diária no campo e um dia foram obrigados a deixar a terra natal.
O destino reservou-lhes um presente, um grande cruzamento entre duas grandes avenidas na cidade de Feira de Santana, ali vivem exercitando a solidariedade dos outros. Alguns, mais comovidos, ou mesmo incomodados com a fealdade com que a miséria se lhes apresenta, são com ela solidários, outros preferem acabar com a pouca auto estima que ainda resta àquela gente indicando-lhes com a precisão de quem já conhece muito da vida, que melhor seria procurar um trabalho ao invés de pedir esmolas.
Em alguns poucos momentos conseguem sorrir uns para os outros, contam estórias da seca, estórias de Brejinhos. À noite, em volta de uma fogueira, numa praça da cidade, tomando aguardente e fumando cigarros de palha são felizes à maneira deles, pois sabem das adversidades que passaram, sabem que merecem estar ali,  e ninguém será capaz de julgá-los, porque afinal, venceram.

Abdon Menezes

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