A Constatação

A rua Babcock era cheia de árvores de bordo e no outono as folhas ficavam tão vermelhas que ele se lembrava do sangue da sua mãe. Leo não era o tipo de cara de ficar se martirizando, mas nos últimos meses ele não conseguia parar de pensar em morte. Às vezes, quando estava dirigindo, ele imaginava batendo num carro qualquer e criava as histórias mais loucas de desastres com ambulâncias, polícia, corpos espalhados pela estrada e amigos correndo pra visitá-lo no hospital. Outras vezes, ele se imaginava no meio de um tiroteio com uma bala atingindo seu ombro e matando alguém ao seu lado.

"Eu tô ficando completamente doido", ele pensava. Leo tentava enxotar tais pensamentos com respirações profundas, mas acabava fechando os olhos quando estava no volante e ficava mais nervoso ainda. Tentou ouvir música clássica, mas como não entendia nada disso, acabou comprando Wagner e, um dia, quase teve um ataque histérico na hora do rush. Acabou fazendo umas aulas de yoga que uma amiga lhe aconselhou e as coisas pareceram melhorar.

Um dia, quando Leo estava voltando pra casa depois de jantar no seu restaurante italiano favorito na Melrose, ele reparou que uma caminhonete à sua frente não estava indo muito reta. Ele resolveu dirigir mais devagar e observar o que estava acontecendo. E, por sorte,
Leo escapou de colidir dali a alguns segundos. Ele assistiu a tal caminhonete ziguezaguear e bater em 2 automóveis que estavam estacionados do lado direito, antes de virar de lado na próxima esquina. Era 11 da noite e a rua estava deserta.

Leo discou 911 e começou a falar com a operadora quando resolveu abrir a porta e acudir a motorista que tentava pular da janela. Ele viu pelo retrovisor que a pessoa queria sair do carro e correu a tempo de oferecer ajuda. Quando chegou mais perto é que percebeu que o motorista era uma mulher de cabelos vermelhos usando uma mini-saia cor de rosa. Ela parecia drogada e sua meia estava rasgada. Não adiantou pedir que ela não pulasse, pois ela se jogou no asfalto logo depois dele oferecer ajuda.

Rejane não era o tipo de mulher que deixava alguém ajudá-la. Começou a trabalhar com quinze anos e sempre foi independente de tudo e de todos. Tinha orgulho das suas decisões e não deixava homem nenhum puxar a cadeira ou abrir a porta. Pra ela essas coisas não eram gentilezas, mas sim papagaiadas românticas idiotas salpicadas com superioridade machista. Assim sendo, Rejane levantou do asfalto sozinha sem querer aceitar nenhuma ajuda de Leo.

Ele não sabia como lidar com ela e ficou seguindo Rejane pra ter certeza que ela estava bem. Quando ela levantou, ele notou que havia sangue na perna dela e ficou paralisado. Ela foi pra trás do carro e parecia querer achar alguma coisa, mas quando falava não fazia sentido. De repente, vindo não sei de onde, aparece um mulato alto e musculoso com um celular no ouvido dando descrições do acidente pra quem estava do outro lado da linha. Rejane perdeu o equilíbrio e se segurou no braço de Leo. Ele ouviu ela dizer que não estava se sentindo muito bem antes de desmaiar. Leo ficou ali sentado com ela por uns dez ou quinze minutos até que ouviu a ambulância chegar.

Quando os homens tiraram Rejane de seus braços ele sentiu a mão dela segurar mais forte a dele. Leo ficou ali debaixo de uma árvore sentindo seu colo ainda morno do corpo de Rejane. Sua cabeça nunca esteve tão clara. Seus pensamentos nunca estiveram tão límpidos. O frio do outono lhe batia no rosto e penetrava nas dúvidas mais recentes de Leo. Ele se lembrou de quando os homens vieram com o caixão e colocaram o corpo de sua mãe dentro dele. De como eles tiveram dificuldade de passar pelo corredor e entrar no elevador. De como o quarto dela ficou silencioso e ainda assim cheio dela e de sua voz. O único sangue que rolou quando ela morreu, foi o dele. Leo não conseguiu dormir na noite que sua mãe faleceu de tanta dor que sentia no peito. Levantou umas cinco vezes pra ir ao banheiro, cortou a mão com a gilete do pai, mas não teve coragem de cortar os pulsos. Gostava da vida tanto quanto sua mãe, mas ainda não sabia totalmente disso.

Leo teve que responder às perguntas dos policiais por uns trinta minutos e depois pode voltar prá casa. Ele seguiu dirigindo em círculos e parou umas duas vezes sem saber o que sentia e porque procurava saber o porquê do que sentia. O alarme do relógio tocou e ele apertou o botão pra que parasse. Conseguiu chegar em casa às duas da manhã e sentou à escrivaninha. A folhinha em cima do computador ainda estava no dia anterior. Automaticamente, Leo virou a página do calendário e, pra sua surpresa, ele viu uma anotação que havia feito no ano anterior e que ele havia colado no dia 15 de outubro. "Não apresse o rio, ele corre sozinho". Era o título de um livro que ele achou no armário e que sua mãe tanto gostava. Depois disso ele ligou a TV, deitou no sofá e dormiu até o meio-dia.

Cinco meses depois, Leo estava tirando um cochilo no sofá enquanto assistia o canal Discovery quando a campainha tocou. Ele abriu o olho direito e deu uma resmungada como quem reclama do barulho. Colocou uma almofada na cara e virou pro lado, mas a campainha tocou novamente. Ele tirou a almofada do rosto e puto da vida gritou pra porta: "Quem é?" Do lado de fora veio a voz de Rejane que dizia: "Meu nome é Rejane e estou procurando pelo Leonardo Gonçalves". Leo achou aquilo tudo meio estranho
e resolveu levantar pra ver quem era. Ao abrir a porta a moça foi logo se explicando.

"Desculpe incomodar, mas eu vim agradecer pela ajuda que você me deu há uns meses atrás quando sofri um acidente em Toluca Lake. Eu…" "Era você?" Leo não havia reconhecido Rejane já que agora ela estava de cabelo preto e usava jeans com uma camiseta do Lakers. "É, eu pintei meu cabelo… Será que a gente pode dar uma caminhada? Eu queria mostrar uma coisa pra você", ela disse. "Ah… claro. Deixa eu botar meu tênis. Péra aí".

Rejane e Leo desceram no elevador curiosos de saber mais sobre o outro, mas como estavam encabulados, não fizeram muitas perguntas. Ele a seguiu até a sua caminhonete que estava estacionada numa rua lateral e ficou surpreso de ver que o carro estava em boas condições. Ela saiu explicando que sua mãe pagou pelo conserto e insistiu que ela fosse agradecer pela força que ele deu.

"Sabe, eu perdi meu filho naquele acidente". Leo gelou. "Eu estava com três meses". "Eu sinto muito", disse Leo rapidamente e com muito carinho. "Mas na realidade eu vim aqui trazer um cartão da minha mãe…", disse Rejane com os olhos cheios d'água. "Ela vinha sonhando muito naquela época. E nos seus sonhos sempre aparecia um rapaz com um corte profundo na mão chorando e pedindo ajuda. Quando contei pra ela sobre você e da cicatriz que senti na sua mão, ela ficou tão comovida que escreveu esse cartão aqui. Infelizmente mamãe estava muito doente e faleceu duas semanas atrás".

Rejane franziu a testa, respirou fundo, colocou as mãos no coração e começou a chorar. A cabeça de Leo ficou clara e límpida novamente. Ele abraçou Rejane e, enquanto estavam ali parados na rua, ele entendeu pela primeira vez que a dor e a tragédia lhe traziam clareza de pensamento. A constatação doeu, mas com ela veio a certeza de que o mundo e todas as pessoas estavam conectadas entre si.

Kátia Moraes

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