O porão de todos nós

          Naquele porão, havia um mundo fantástico que sussurrava histórias.

          Peças de carros, ferramentas, móveis antigos, baús, vestidos, pedacinhos disso e daquilo. Tudo guardado junto aos ratos e ao pó. Objetos vigiados pelas assombrações do tempo que não esgotam o serviço. Sentinelas que não deixam o passado descansar. O tempo continua firme e estático. Agarrado aos objetos com energia e vida própria.

         À noite, do quarto de visita da casa, podia-se ouvir os brinquedos antigos se mexerem lá embaixo. A boneca de porcelana abria o único olho azul. Os cílios falhos e longos não deixavam mais as pálpebras se fecharem. Alisava seu vestido de cetim encardido. Ajeitava seu colar de pérolas falsas. Sacudia a vasta cabeleira loura e encrespada e calçava seu sapatinho de tricô amarelo.

      Num canto, debaixo de um pneu velho, um carrinho de madeira escorregava em direção à boneca. Capenga, com apenas três rodas, pintura descascada, uma porta arrancada, lá ia ele arranhando o chão sujo, em busca de companhia.

      Um carrossel caído da estante, rodava desafinado e rouco, lembrando de um parque que, um dia, brilhou encantado. Os cavalinhos quebrados. Luzes, nenhuma. Girava ao vento pela vontade de ser um brinquedo bonito e colorido.

       Do velho baú, um retrato branco e preto de uma menina loura e morta, pulava para fora e mostrava seu sorriso interrompido. Onde estaria? Seriam dela aqueles brinquedos?

        A mãe contou que tivera uma filha morta. Seria aquela? A atropelada pelo bonde enquanto andava de triciclo? Coitada! Morava debaixo da lápide branca e fria daquele cemitério de muro branco, no centro da cidade? Ou, à noite, habitava o porão sombrio? Como seria ela? Ficaria triste ao ver outra criança brincando com seus brinquedos? Teria poderes sobrenaturais? A mãe gostava mais dela do que dos outros filhos? Tantas perguntas misturavam-se ao pavor.

      Um pé só de sapato velho guardava uma aranha cabeluda que idolatrava sua morada e a defendia com garras. Teria o sapato algum cheiro? No buraco da parede um camundongo balançava o rabo. O nariz empinava para cima e para baixo à procura de comida. Farejaria algo naquele monte de ferro velho? Pernilongos faziam a festa das lagartixas. Eram muitos. Ainda mais que a casa era na beira do rio. Nas paredes, velhas manchas faziam desenhos aterrorizadores que de dia, nada pareciam, mas à noite, até andavam de um lado para o outro.

          O resto do porão abrigava obstáculos a serem transpostos onde os sonhos criavam pernas e asas e os filmes podiam ser vividos, sem tela, na imaginação do habitante do quarto de cima, limpo e quente, porém, sombrio.

           No quarto de cima do porão, o oratório aceso com uma pequena luz vermelha no lugar da vela que era mantida apenas de dia. A penumbra ajudava a criar o clima de sombra e a presença dos fantasmas. O grande espelho bisotado da porta do armário colonial em frente à cama, refletia um cenário de mistério: o lençol cobrindo o corpinho trêmulo de pavor. Visto de fora, o fantasma morava mesmo dentro do espelho.

           O cheiro do ambiente era de naftalina, ou de resto de vela, ou ainda de coisa guardada, ou de mofo. Poderia ser também de gente doente, de remédio da bomba de flits ou espiral. Nunca o de uma lavanda fina nem de um sabonete perfumado. Talvez por isso o porão fosse assim tão cheio de amontoados estranhos e curiosos. Lá, só de dia. À noite, quem costumava freqüentar o perigoso lugar era a mente fértil da criança que vasculhava o seu ponto fraco até o sono vencer a agonia. O cheiro poderia ser também de morte. Quem sabe o cheiro da menina morta?

           De calafrio em calafrio o suor molhava os lençóis de cambraia . As vozes eram inúmeras. As palavras, nenhuma. Os olhos viam o colorido imaginário do medo. Se o vento fazia barulho, então, a urina saía cama abaixo até vazar no colchão de crina de cavalo e cair no chão de taco de madeira . No dia seguinte, a mancha marcava a  cera e entregava o delito sem dó.

           Quanto sofrimento tem uma criança com medo. Quanto medo se tem por nada e de nada.

           A criança cresceu perto do porão. O medo passou um tanto longe da razão, pois todos os pequenos detalhes são guardados, cultivados, relembrados.

           O porão... nunca mais foi esquecido.

           Os cheiros a toda hora pressentidos com repulsa pelos objetos marcados, jamais podem ser ignorados sem que a lembrança desperte à fantasia novamente. A memória está adormecida mas nunca morre nem desaparece. Lembranças que são postas de lado, apenas.

           Num cantinho.

           No nosso porão interior de guardados antigos. Muito antigo.

Cláudia Villela de Andrade

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