Tinha cheiro de fumaça de cigarro. Dizia-se que das cortinas ao rodapé, do lustre ao piso. Não que tivesse cigarro caído pelo chão, nem que cinzas ficassem sobre os móveis. A madame sempre fuma muito, era o que se dizia, mas quem há de provar? Apenas uma pessoa entrava no quarto. A velha, muda, trazia as roupas de dentro, andava pelos corredores, arrastando os pés e levando o cheiro consigo. Não havia quem não comentasse. Desagradável! Muito desagradável! Que faz lá dentro essa pobre?
A mudez fazia a senhorinha de pele escura ser sem expressão, sem forças maiores para olhar adiante, cansada do tempo que passava. Queimada de sol, de esfregar e estender roupa nos varais da vizinhança, a mulher fez a vida toda um serviço pesado, que lhe rendeu varizes, braços ágeis, cabelos brancos e pobreza. Não se acostumava com luz, preferia a noite; velas. Ficava de joelhos, todas as noites; as crianças viam, por detrás das portas. Ela, se percebesse, arremessava os chinelos. Sim, era brava. Devia ser religiosa. Só que por não falar, ninguém poderia saber nada sobre ela nem sobre a mulher do quarto.
De fora, se via a casa, simples e de pintura gasta, tinha portas de madeira alta, estilo antigo e não mais usual de construção. Existiam rachaduras estreitas por todos os lados. As duas janelas ficavam à direita e à esquerda da porta. Vivia aberta; tinha um papel pequeno de anotação dependurado. “Cuarto vasio”. Da entrada, se iniciava um corredor longo, que atravessava toda a casa, de piso de cimento, frio, tratado com cera vermelha. A rua era calma. A vizinhança quase não aparecia. Ficava perto da central de ônibus. Quem chegava na cidade, vindo de longe, tinha que escolher um lugar pra ficar. Aquela casa era para isso. Tinha gente, sempre diferente pelos quatro cantos lá dentro. Mas, havia uma certa rotina nisso. Ninguém mais se preocupava em entender nada. Ouvia-se “causos”, desgraças, “felicidades”. Às vezes, de sorriso no rosto, uma mãe de família podia adentrar. Filho no cólo, fome no estômago, trazendo esperança de algum lugar. “Meu marido tá aí, nessa cidade grande aí. Vô achá. Me escrevia toda semana, e faz mês que ele num aparece. Quis pregá susto no cabra.” Dali dias, vem ela de rosto inchado. Marido morto na rua, ou com uma outra mulher, gastando o dinheiro que ela veio contando pra entrar no ônibus. Essa rotina fez a portaria se tornar grande demais, toda escura, de cortinas marrons, teto descascado, infiltração nas paredes. A cada um que entrava, uma gota de água aumentava o vazamento, uma lâmpada ficava mais fraca, uma prega da cortina se desfazia. Dores, frustrações, cenas de vida que viam e iam pelos casos de luta, de fracasso, de traição, de paixão. Também tinha de gente feliz. Vez ou outra surgia. Nesses dias, uma luz quentinha do sol entrava pela fresta da janela. Dia de sorrir.
Tinham as histórias que passavam, tinham as histórias que não passavam. A da mulher do quarto não se sabia nem quem era. Segundo o que diziam, o quarto ficava fechado, sem jeito de ver lá dentro. A janela do cômodo dava pra rua, mas por ser alta, não se alcançava fácil. Não havia vidros nela; só espaços vazios, quadrados e tristes. A cortina era cor vinho, e o se levantava devagar pelo vento que passava. Tinha leves furos por todo o tecido. E o vento levava a cortina pra cima. Aparentava ser muito antiga. Tinha poeira. E levantava pelo vento...
Seguia-se a rotina. A lavadeira muda entrava. Ninguém via. Ela saía, ninguém percebia. Nem se fazia questão disso. “Pra quê? Ela manda deixá dinheiro todo mês aqui na portaria; é o que tá me importando agora. E isso faz tempo, porque o outro dono, já passô o imóvel coá mulhé lá.”
“Fais o seguinte. Força a porta, Jão. Tá lôca? A muler levanta e nóis, vâmo corrê pra onde? Fica quéta que dá mais certo. E se ela tivé morta?”
“A gente tenta entrá e depois descobre como é a velha. Não sabe se é velha! Quem vai ficá dentro de um quarto tanto tempo? E se ela pegá a gente? Pode matá a gente? Fala besteira! Minha mãe já disse pra eu largá disso. Disse que vô apanhá. Medroso! Medroso é você! Pára!”
Alguns queriam saber; não tinham coragem.
E o cheiro de cigarro ficava pelos corredores. A senhorinha trazia coisas para a mulher. Os cigarros eram de marca boa. Tirava o lixo de lá também; pouco. Não se ouvia barulho. Só o do chinelo da senhorinha. A velha arrastava, não se sabia se por peso, não se sabia se por tristeza. Sem expressão, a velha.
Uma família entrou pra ficar dois dias; tinha dois meninos. Levado demais esses garoto! Diz pra dona da casa que nóis vamo ficá pôco. No mesmo instante, as quatro perninhas brancas e com vontade própria, carregaram os filhos da hóspede para o fundo da casa. Corriam de um lado pro outro. A mãe tinha sumido na escada que descia pro porão, lugar do “cuarto vasio”. Ouviu-se os meninos correndo. Ouviu-se um chinelo se arrastando no corredor. Não tinha mais barulho algum; só um vento soprara. Era final da tarde.
– No quintal, eles não tão. Já vi tudo isso, pela casa não tão. – fala um dos rapazes do lugar.
– Meu Deus! Misericórdia! Cadê as peste daqueles dois. Foram prá rua? – a mãe já com as mãos na cabeça, remexendo os cabelos pretos.
– Lá fora não tem nenhum deles.
– Jesus! Que graça fazer a mãe passá apuro. Carlo! Pedro!
– Não se deixou de procurar em beco qualquer da casa. Foi sumiço, mulhé.
– Zé, em veiz de ficá falando bestera, vai prá rua pra ver. Some daqui!
Um tapa se ouviu de longe. O homem caminhou pelo corredor apoiando o braço. Levou o tapa.
Nem sinal.
– Dona, a senhora já procurô na vizinhança?
– Tô desesperada! Meus filho...
– A senhora já falô com as pessoa da casa?
– Não sei se com todo mundo. Pedi pro meu marido vê.
– Tem a mulher do quarto da lá porta.
– Que tem?
– Ela é estranha... qué dizê: sei lá, nunca ninguém viu.
– Ouvi falá. Tem gente que tem medo dela. – Um minuto, pensando. - Meus filho! Onde é o quarto?
– A primeira porta na entrada. Eu, se fosse a senhora, não ia.
– Se ocês não sabe da mulher, eu vô lá sim. Agora vamo conhecê.
– Calma, minha senhora – as mãos do homem quiseram impedi-la de prosseguir.
– Não vô fazê nada demais. Vô pedí pra abrí. Tem problema?
– Não, senhora. Mas, os menino não tão lá.
– Quem disse isso? Vô lá pra vê.
A mãe moça tinha saia de algodão lilás até os joelhos, chinelo de dedos, cor de terra de chão. A agilidade de seus movimentos fez a porta do quarto surgir rapidamente em sua frente. Pares de olhos, observavam do fundo da casa. Uma batida na porta. Sem resposta. Duas batidas. Novamente, sem resposta. Na terceira batida. A porta rangeu. A porta devia estar aberta. As mãos foram na maçaneta e num instante a porta estava destrancada. Sem ação, a mulher soltou-se da porta. Devagar, foi-se abrindo o quarto. O que se via, era muito pouco. Havia fumaça de cigarro. A luz que entrava pela janela fazia um risco no ar, e nele, a poeira plainava devagar. Via-se um tapete velho no chão, logo na entrada. Pela porta, escapava-se a fumaça, conforme se abria. A mãe permanecia estática. Seus olhos corriam em busca de alguma coisa. Os braços ficaram ao lado do tronco, sem movimento. Começava a ver os móveis escuros. Havia uma cama. A cortina levantava-se mais, pela corrente de vento que se formara. Um abajur que se apoiava no chão estava apagado. Um quadro de tapete preto, com detalhes em verde, se sobressaía na parede, em frente à cabeceira da cama. O ambiente perdera a fumaça. A mãe permanecia na porta. Seu coração apertou-se. Um passo a moveu. Sua perna esquerda. A outra perna a seguiu. Fechou os olhos. Sua garganta estava seca. Um tremor a fazia arrepiar. Seus pensamentos corriam feito o vento da corrente. Via-se entrando e saindo do quarto, em prantos e desespero. Entrando e saindo trazendo os filhos nos braços. Entrando e saindo com lágrimas; entrando e saindo, desesperadamente. Em segundos, seus passos foram se aproximando da cama. A cortina se abanava. Já estava no centro do quarto, quando olhou e viu outra porta, ao lado do armário todo cheio de desenhos de flores. Escuro como a cama. Atrás da porta, não se via movimento. Seu coração se apertou. Uma lágrima forçou-se a cair. Queria gritar, e não conseguia. Virou-se devagar, e começou a caminhar para a outra porta. Sentia que algo poderia ter acontecido. Perdi meus filhos, Meu Deus! Não, não perdi! Avançou e sentia a pulsação acelerada do coração. Sentia a transpiração escorrer e molhar a camiseta justa azul. Respirava ofegante. Seus olhos já buscavam o interior do banheiro. Era um banheiro de azulejos brancos. A porta estava entreaberta. Sua mão se estendeu e buscou um apoio para afastá-la. Seu próximo passo seria o suficiente.
Mãe! Um susto! Virou-se rapidamente para trás e ouviu passos no corredor. Saiu do quarto desenfreada e quando se deu conta, abraçava os filhos. Como isso aconteceu?
– Ficâmo no quintal e quando a senhora sumiu, fômo atrás. A gente saiu e foi andando. Entramos no bar dali da outra rua, e o cara falou que a gente tinha que esperar o pai, pra não saí sozinho. Então, a gente ficô. O pai demorô. Agora, nóis viemo. Tamo aqui, né, mãe?
– Graças à Deus.
E num instante que tirou os olhos do quarto, a porta estava fechada. Levantou-se e afastando-se dos filhos, tocou na fechadura. Ela estava trancada.
– Nunca mais faça isso, molecaiada.
Havia um sorriso em seu rosto. Os garotos foram brincar. E o vento levava a cortina pra cima. E levantava pelo vento...
... e tinha cheiro de fumaça de cigarro.
Márcia Cristina Rodrigues Pereira