Pedras Portuguesas

Escrever sobre um suicídio não é dos temas que passam diariamente na minha cabeça. Tentar explicar porque quando minha mãe falou simplesmente que eu tinha um primo a menos, e aquilo não me surpreendeu, não é fácil.

Nem sempre quando uma pessoa se joga do terceiro andar de um prédio na Lagoa tem motivos. Quem sou eu para julgar o que pode ser considerado motivo para um suicídio. Mas não me surpreendeu.

Minha família é bem pequena e a perda de um primo, mesmo que de um grau afastado, e adotado, promove comoção. Menos na mãe, que ligou, comunicou, deslocou a culpa para um desentendimento com a namorada, poucas horas antes, e emendou um “e no mais, tudo bem?”

Ninguém resolve se suicidar de uma hora para outra. Entre o momento que ele respondeu para a mãe que ainda não estava com fome, que o pai trocou o sofá da sala pela cadeira em frente ao computador e ele se jogou, aposto que sorriu.

Seu pequeno segredo. Vou me matar agora. Ela na cozinha, ele no escritório, o interfone toca. Quase dois metros, cento e vinte quilos estão espatifados aqui na portaria. A Lagoa como testemunha, o barulho surdo de um corpo pesado batendo no chão.

Nada mais se pode fazer. A ambulância e a remoção para o Miguel Couto são meras formalidades, todos sabem.

Dois irmãos. Duas pessoas adotadas ainda pequenas. Duas pessoas que foram inseridas em uma família. Como uma experiência. Um deu certo, se encaixou. O outro não, se espatifou. “Foi bom enquanto durou”, a mãe disse.

Palavras de quem já estava conformada. Eu disse que já esperava. Ela também. Desistiu do filho adotado ainda no começo da adolescência. O experimento começara a dar problemas. O outro não, estava perfeito, sem traços de rejeição. Diziam até parecer com o pai.

Filho com defeito. Filho adotado que precisa de psiquiatra. Não vale, não pode ser assim. Filho que toma remédio para psicóticos, que quase morre sem querer tomando chazinho do Santo Daime. Que, rejeitado, escolhe ser psicólogo, mas não consegue.

Arruma como namorada, a primeira, uma mulher mais velha, separada, com filha. E eles se dão bem, por um tempo. Mas brigam, quem se espante que briguem?

A mãe conformada fala, “foi bom enquanto durou”, ele tinha brigado com a namorada, mais uma vez, dessa vez por telefone, naquela manhã. Ela não se surpreendeu com o interfone.

Ele sorriu por achar que o desejo de se matar era secreto. Ele beijou as pedras portuguesas da portaria sorrindo, mas, com medo, fechou os olhos antes de morrer.

Não sei se consegui traçar em tão poucas linhas uma síntese de uma pessoa que se jogou pela janela com 20 e poucos anos. Esse é o problema da literatura contemporânea. Tudo é dito em tão poucas palavras.

Ninguém tem mais tempo para ler ou escrever textos longos. A percepção da vida é outra, mais fugaz. Os olhos passam apressados pelo texto, que em sua concisão absoluta não pode abrir mão de uma palavra sequer.

Mas o leitor devora o texto com rapidez e voracidade e não entende. Come palavras e me culpa por dizer que entendi o porquê dele ter se matado.

Eu só posso reiterar que não me surpreendi, porque ele tinha o olhar mais solitário que já vi.

Flávio Izhaki

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