Como de repente faltasse ar e luz. Uma estrela minguando o brilho e
um túnel sem final. A solução que não existe.
Existe algo sem solução? Meu cérebro derrete enquanto
eu busco o ar que me falta na fumaça do cigarro e
Tem fósforo?
Ele olha pra mim como olharia Bogart.
Não fumo.
Puta que pariu! Agora essa onda de gente saudável que não
fuma, não bebe, não mente! Esse mundo tá uma merda.
Um monte de gente que se tranca em academias de musculação
e sua e geme e cansa. Que farei com as minhas celulites se não tenho
a menor vontade de esmagá-las em uma série de 250 agachamentos
diários? Muito bem... ele não fuma.
O que você faz então?
Como?
Sim, por que todos nós encontramos uma forma de auto destruição...
então, qual a sua?
Ah, sim... Eu ando de motocicleta com walkman.
Duas formas então. Andar de moto e andar de moto com walkman...
interessante... não fuma mas é mais auto destrutivo que eu.
Você se acha auto-destrutiva?
Algumas vezes até conscientemente, como é o caso do
cigarro.
Ele mexia com as mãos de um jeito interessante. Era quase como
um prestidigitador. Rápido. Meus olhos quase não acompanhavam
sua habilidade manual. Acho que era por que não sabia muito bem
como ordenar seus vocábulos... então, desenvolvera uma linguagem
única com as mãos. Será que tocava assim tão
bem? Será que sobre minha pele essa habilidade renderia arrepios
múltiplos? Bobagem... ele não fumava e pior! não se
levantara em busca de um fósforo. Aquelas mãos provavelmente
nunca haveriam de me tocar. Ele andava de moto, ou seja, era um moleque
crescido. Hum... será que além de não saudável
agora eu era preconceituosa? Ou será que a vida em sua tortuosa
maneira me levara à impaciência de um não Jó?
Oh, sim... a vida... De repente eu me lembrei que a vida andava me dando
umas lambadas muito fortes e que eu acordava cansada todo dia. Eu lembrei
que depois da primeira grande queda eu permaneci no chão. Tentei
levantar diversas vezes mas a cada esboço de um leve movimento,
a vida, ela mesma, extenuava as minhas forças. Eu lembrei que vida
passara a ser um substantivo abstrato que significava nada além
de sua própria abstração. É, eu estava começando
a ficar mesmo de má vontade com motoqueiros e afins. Mas eu sabia
que era eu o problema. Era o cansaço... nada além do cansaço.
Voltei para as mãos:
Você é descendente de italianos?
Não. E você?
Uma mistura grande. Portugueses, brasileiros, ingleses, alemães
e franceses. Vê? Podendo ter escolhido tanto lugar, Deus escolheu
o Brasil pra mim. Aliás, Deus está me saindo melhor que a
encomenda.
Deus?
Tenho pra mim, que Deus é o melhor comediante de todos os tempos.
E isso dito pela atriz de comédias tantas vezes exaltada e premiada
que sou é um elogio e tanto. Quando eu estava pra nascer Deus me
deu duas opções; ser artista no Brasil ou viver no rigoroso
inverno da Sibéria. Eu lembro que ri às custas Dele. Muito
fácil optar! Sou atriz, cantora, danço, sapateio e sigo a
carreira artística desde os cinco anos de idade. E claro, sou brasileira.
Um comentário? A Sibéria deve estar maravilhosa! O
que é que tem falar de Deus? Porque o cara das mãos se mostrou
tão surpreso ao ouvir Seu nome?
Sim! O cara lá de cima... o Pai, o todo Poderoso...
Eu sei quem é Deus! É que falar sobre Deus é
difícil...
Cara, só o fato de você saber quem é Deus já
lhe dá toda a liberdade de falar Dele, e, é claro, já
o põe à frente de mais que metade da população.
Deus é o sujeito engraçado e inteligente que mora nas nuvens
e cujo senso de humor é notável. Por exemplo: Deus
nos deu a terra Paraíso, uma única árvore cujo fruto
não deveria ser comido, Lúcifer com passe livre por aquelas
terras, o livre arbítrio e um filho disposto a pagar por nossos
pecados. Agora pare e pense se colocar esses ingredientes em um único
lugar em um mesmo espaço de tempo não é coisa de gênio?
Veja bem que comédia de situação Deus nos proporcionou!
Alguns poderiam julgar isso como uma piada divina de mau gosto, não?
Não! O final há de ser sempre justo se o protagonista for
Deus! E isso me lembra da fé. Que coisa maravilhosa é a fé!
Que coisa inexplicavelmente obsessiva a fé! E que coisa tão
facilmente abalada a fé...
Sabe, eu gosto mesmo da forma com que você movimenta as suas
mãos.
É mesmo? Nunca reparei nelas. E nunca ninguém me disse
nada sobre isso. O que há de extraordinário em minhas mãos?
Bem, mãos servem pra tantas coisas, que é difícil
julgar o que é extra em seus movimentos ordinários. Entendeu?
Extra ordinário...
Eu lembro que ri sem graça por ter tentado explicar o extraordinário
a um motoqueiro que dirigia ouvindo seu walkman. E então, a coisa
do extarordinário me levou de volta ao momento sem luz pelo qual
passo, por que são as coisas fora do padrão, que nos chamam
a atenção. E nem sempre o extraordinário é
uma coisa boa, às vezes é algo assim... como a morte ou a
própria.
Você sabe aquelas coisas que acontecem com a gente, que parece
que nunca mais a gente vai conseguir se levantar? O que nos deixa em letargia,
sem ação, em inércia? Coisas que saem da rotina e
nos balançam?
Sei. Mas a gente no final acaba se levantando.
Sempre?
Você viu " O casamento do meu melhor amigo?" Tem uma cena em
que a Julia Roberts está desesperada e o camareiro do hotel diz
pra ela, que a avó dele sempre falava uma frase, quando ele estava
se sentindo sem saída. Sabe qual era a frase? "Isto também
vai passar!"
Eu não acreditei que ele citara "O casamento do meu melhor amigo"
. Não acreditei! Além de não fumar, de ser motoqueiro,
ele citava "o casamento do meu melhor amigo", como se citasse um filósofo
existencialista da melhor qualidade. Tive ânsia de vômito.
Ele disse " Isto também vai passar!" O que responder diante disto?
Como mostrar naturalidade no lugar do desprezo? Cacete! Eu estava mal!
Eu odiava o sujeito, por que citara Julia Roberts! Sei lá! Cada
um tem o direito de citar quem quiser! Merda! Eu me sentia uma merda por
que eu me via cada vez mais tentando encaixar pessoas em parâmetros
estabelecidos a partir de um ideal irritante de perfeição!
E que perfeição era essa? Então o cara era imperfeito?
Uma grande babaca que eu era... Mas e daí? Me sentir uma merda não
me fazia melhor em nada, não me fazia perdoar o cara das mãos!
Apaguei o cigarro pela metade no cinzeiro abarrotado e foi mais uma luz
que eu matei.
É...
Eu nunca mais esqueci esta frase.
Pára. Pára. Cala a boca. Pára. Pára. Pára.
Eu não vou agüentar. Vou vomitar. Pára, pára,
pára, pára! Esmaguei o cigarro mais ainda tentando extinguir
seu último fôlego; a última brasa que o oxigênio
alimentava, a última fumaça que o papel em combustão
realizava. Será que ele acreditava em milagres? É claro que
ele acreditava! Ele tinha o perfil do babaca burguês a quem a vida
deu sempre sem tirar facilitando a crença e o milagre! O palhaço
na minha frente era digno de uma fé cega. Aliás, fé
que é fé, para ser fé de fato, tem que ser cega. Dizer
fé cega é ser redundante. Uma vez eu lembro, eu tive fé.
Eu tinha tanta fé que agradecia as bênçãos antes
mesmo de ter sido abençoada. A vida com fé é mais
fácil de ser levada. A confiança de ter alguém que
sempre está por nós, que sempre nos ampara e que nunca nos
nega um favor é o verdadeiro ópio! O milagre é a onda.
Hahahahahaha. E pensar que bastou um pedido negado para que a minha fé
começasse a ser questionada. E quando se questiona uma fé
é por que não há fé. E sem fé, que luz?
Que solução? Que milagre? Isto também vai passar?
Ao cacete! Cadê a minha fé? Eu quero a minha fé de
volta! Eu quero a minha burguesia! Eu quero.
Patrícia Evans