Aquela noite era uma excepcional oportunidade. E foi por isso que, em pleno noir estrelado de um verão escaldante, ela pegou a arma e atirou. Seu rosto sem face soltou um grito estridente e fora de hora. Não acreditou que fosse ter coragem. Mas, quem poderia tê-la impedido, a não ser sua consciência? O sangue escorria por todos os poros.
Do outro lado, o corpo, se desmanchando. Morria em um silêncio absoluto. Naquele momento, todas as suas palavras em vida, pareceram em vão. Quantas besteiras, disse!Por que teve que humilhar sua cozinheira roceira? Para alguns, um prato fundo de farinha, já seria bom alimento para uma semana. O feijão estava até gostoso. Tudo culpa de um simples pedaço de carne de porco. Passado do ponto. Empregada preta como um carvão. É, merecia mesmo, tornar-se presunto. Estava na pior das solidões. Muda, antes do fim. Não tinha a quem endereçar ofensas ou elogios. Simplesmente, não mais importava ou importunava. Tinha se tornado mais uma dessas velhas melancólicas que só servem para pedir ajuda, em propagandas de asilo.
Não havia quem lamentasse ou gritasse por socorro. Não teve nem a sorte de morcegos como testemunhas. A janela azul do quarto estava aberta, porém, nenhuma brisa. A lua reinava única entre pontos faiscantes. Nos últimos tempos, adquiriu a mania de contar e nomear estrelas. Achava que, quando alguém morria, transformava-se em uma. Chegava até a atribui-las, personalidades. Maria Regina era com quem mais se identificava. Arrogante, só dava o ar da graça, quando bem. Não aceitava ser parte da constelação. Queria brilhar sozinha. O pior do humano é quando ele perde a consciência de sua própria mediocridade. Tenta ser de um tamanho maior do que suas dimensões. Perde sua capacidade de auto-aceitação. Torna-se ridículo. Sua ambição de ser Deus cegava os olhos. Ave Maria, cheia de Graça. . . . Cabia, unicamente, a si própria, velar por seu corpo.
Sempre foi uma figura antipática, daquelas que não se consegue gostar, nem por um isolado segundo. Bendito é o fruto do vosso ventre.... Os filhos tinham crescido e ido embora. As noras não mais ouviam seus palpites e nem levavam os netos para visitas. Jesus.... Era beata da paróquia de São Genaro da Purificação. Dessas que rezam dez vezes o terço, diariamente. Isso não a impedia de realizar pequenas crueldades. Como na vez em que furtou, durante a missa, as contribuições dadas. Alguém tão terrivelmente mesquinho, não teria outra opção, além do purgatório. De nada adiantariam suas preces. Contradições não são bem vistas no céu. E o diabo não aceitaria ter seu brilho ofuscado.
Santa Maria, Mãe de Deus.... Maria Regina estava presente. Observava o corpo de longe, como se não pudesse acreditar naquela barbaridade. Assim como uma pessoa se habituando ao escuro, foi fechando os olhos sem nenhuma pressa. Rogai por nós, pecadores.... ”Não matarás”. Aos poucos, foi deixando de enxergar a sua última visão terrena. Egocêntrica, até nos últimos momentos. Sua figura desmaiada, no chão, parecia assustadora, pelo reflexo do espelho.
Agora e na hora de nossa morte.... Enclausurada entre quatro paredes brancas, achou que o suicídio fosse a melhor opção. Aquela noite pareceu ser uma excepcional oportunidade. Nenhum funcionário do asilo poderia impedi-la. Estavam muito ocupados com seus planos para a praia do dia seguinte. Pegou a arma do falecido, apagou a luz e atirou em si mesma. Não queria ter como sua última imagem, a figura de uma velha horrorosa. O espelho denunciava apenas contornos, pintava um retrato sem detalhes. Seu rosto sem face soltou um grito estridente e fora de hora. Não acreditou que fosse ter coragem, porém teve. Seu cadáver ia se desestruturando, em um silêncio absoluto. Os cílios postiços foram de encontro, definitivamente, com suas fundas olheiras. Amém.... Maria Regina brilhava, agora, mais intensamente.
Renata Belmonte