Silêncio e Memória

Estava sentando em uma poltrona branca, de costas para a porta. Pensava nela e esperava ouvir o barulho do elevador chegando e da chave entrando na fechadura da porta.

As luzes apagadas e o bilhete dela na mão. Teve vontade de reler, mas com aquela escuridão seria impossível. Na verdade nem precisa reler o bilhete, já havia o decorado.

“Marcos, dessa vez estou indo para valer. Juízo.”

Levantou da poltrona mesmo querendo continuar sentado. Levantou para acender a luz e reler o bilhete que já sabia de cor. Levantou e ao apertar o interruptor sentiu a íris contrair e a sobrancelha serrar.

Não conseguiu ler nem uma palavra. Precisava dos óculos. Já sabia o conteúdo do bilhete de cor, mas foi pegá-los.

A casa estava tão silenciosa que, pela primeira vez em quase dois anos naquele apartamento, ouviu seus passos. Estava mais acostumado a escutar os dela, pois era baixinha e sempre usava salto alto.

Até para ir a padaria ela usava salto alto. Ele achava aquela mania irritante e sempre fazia questão de reclamar. Hoje provavelmente não reclamaria mais.

Colocou os óculos e releu o bilhete. Sentou na cama e deixou o corpo cair para trás. Jogou a cabeça para o lado e os óculos caíram no lençol, sem fazer barulho.

O quarto escuro, a cama gelada e o bilhete amassado na mão. Uma claridade borrada longe, na sala. Nenhum barulho de salto alto, chave, ou elevador.

Sentia-se culpado, mesmo sem saber muito bem porque. Sofria pela falta dela e há quatro dias só pensava em uma coisa. Na palavra “juízo”. Por que ela teria colocado aquela palavra no bilhete?

Logo juízo, logo para ele. Sempre fora cauteloso com ela. Sabia que ela tinha um temperamento complicado. Media suas palavras, suas reações, sua incapacidade de demonstrar afeto.

Deitado no escuro, sob o silêncio cruel do apartamento e daquele bilhete de despedida, chorou. “Dessa vez estou indo para valer”. A força daquelas palavras na sua cabeça. Não tinha mais volta. Tudo tinha acabado de uma hora para outra e ele não entendia bem porque.

Adormeceu por quase duas horas e acordou apertado para ir ao banheiro. Mijou de olhos fechados. Estava ainda entorpecido pelo sono e cansado pelos seguidos dias de vigília.

No espelho do banheiro viu seu rosto inchado após o cochilo, os olhos vermelhos de sono e choro. Baixou a cabeça em desalento e se deparou com os remédios dela. Todos eles abertos e ingeridos ao mesmo tempo.

“Deus, por que ela se matou?”

 Flávio Izhaki

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