Ainda sofria a dor da perda de minha mãe. Minhas vestes ainda
de luto. A dificuldade de minha vida simples, com quatro filhos, e na precária
informação dos anos 50, sabia apenas que o destinos dos portugueses
era o Brasil.
Amanheci naquele dia com o peito apertado, mal consegui cumprir com
as tarefas domésticas, talvez quisesse atrasar as horas. Alberto
com quinze e Augusto, com dezesseis anos, meus dois filhos iriam naquele
dia partir para o Brasil. Terra distante, a terra prometida onde o ouro
brotava a flor da terra.
Foi chegada a tarde, arrumava suas malas com os mesmos cuidados de
quando pequeninos iam para a escola, arrumei uma maleta com bolos, doces
etc. como se aquela refeição durasse para a vida inteira,
como se a viagem fosse breve, como se eles fossem voltar breve, em minha
mente ainda não havia a certeza da longa partida, de dias sem fim
de uma saudade imensa. Eram quatro horas quando a charrete parou em frente
a minha casa e meus filhos já prontos, num silêncio triste,
seus olhinhos arregalados, como prontos para uma missão patriota.
Fomos caminhando até a porta, as escadinhas de barro não
cabia todos nós, e de um a um descemos até o portão.
O cachorrinho Dic acompanhou silencioso, batia o rabo parecia prever a
saudade, parecia despedir. Os dois subiram na charrete, fiz recomendações
de cuidados, de notícias, mas que notícias? Se onde morava
nem correios tinha, e para onde eles iam, será que tinha ? As rodas
secas da charrete foram resmungando à força de meus pensamentos
“não vá”. No céu as nuvens coloriam os raios de sol.
A charrete foi se afastando lentamente, os dois olharam para trás,
eu apenas os olhava silenciosa, A estrada curta, logo a charrete se perdeu
numa curva.
Nesse momento, segurando o moerão do portão, senti algo
sair de meu peito e despencar de meus olhos as primeiras gotas de lágrimas,
que inundaram meus olhos de uma dor nunca antes sentida. Uns pássaros
voaram no céu em direção a estrada, olhei para o horizonte
e montanhas embaçadas cortaram minha vista, e pensei em que horizonte
estaria o Brasil? e num gesto infantil, corri até a estrada, dei
conta naquele momento da perda de meus dois filhos, corri como se a chamá-los
poderia trazê-los de volta, corri, corri, e quando cheguei na curva,
avistei uma poeira ao longe, imaginei que pudesse ser da charrete, retornei
até o portão, e tentei ser rigorosa, e num gesto de mãe
autoritária gritei em meus pensamentos:
“Alberto e Augusto... voltem”;mas de nada valeu.
Subi com dificuldades os três degraus até a porta da sala,
num silencio triste , passei pelo quarto deles, e vi as camas vazias, fui
até a cozinha e o fogão de lenha ainda em brasa, e na pequena
mesa, as canecas do café tomado as pressas e os farelos de bolo
ainda pela mesa, as lágrimas faziam aquelas cenas turvas. Fui até
a janela do quintal, o galo cantou tristemente, bateu as asas e foi embora,
olhei os matos, as árvores, pareciam ter crescido. Senti-me pequena
naquele instante, passei as mãos em meus seios, e lembrei de quando
os amamentei, passei as mãos em meu ventre, estava gelado, parecia
que havia um buraco que vazava até minhas costas, chorava baixinho
enxugando as lágrimas na velha saia preta, luto de minha mãe.
Perambulei pela casa, que como as árvores, ficou enorme, era
a saudade em vida, enterrar os filhos por morte em vida, tinha o mesmo
sabor, um sabor amargo, uma dor sem fim. Minha filha mais nova, não
entendia minha dor e perguntou na sua inocência, quando eles voltariam.
Nesse momento dei conta da pergunta e da resposta: não sabia. Era
assim com muitos patrícios, era assim a dor de muitas mães.
Foi assim desde os primeiros navegantes. Talvez por isso os poetas e cantores
eram tão melancólicos em suas obras e canções.
Voltei até a porta da sala, tentei ir até o portão,
mas não tive forças, era tardinha, ainda cedo para ir para
a cama, mas fui.
Deitei lentamente em minha cama, escondi meu rosto no travesseiro e
chorei, chorei muito, tanto, mas tanto que adormeci e sonhei que Alberto
e Augusto estavam no navio, o mar batia e os dois estavam abraçados
de calças curtas e boné, perto da proa, as ondas imensas
ameaçavam o navio, eu estava em outro navio e tentava alcança-los
para salvar, nesse momento eles gritavam por mim, joguei uma corda até
eles, queria traze-los para o meu navio, a chuva castigava, a tempestade
era terrível, a corda foi até perto de meus filhos, eles
seguraram e tentei puxa-los até o meu navio, mas uma imensa onda
arrastou o navio deles, gritei, mas gritei tanto que acordei com minha
filha e meu marido a olharem pra mim perguntando, e novamente cai num choro
de mãe, como se uma parte de meu corpo tivesse sido arrancado e
dessa vez não escondi meu choro, chorei no silêncio de todos
que olhavam aquela mãe sofrida.
A noite chegou, servi o jantar, meu corpo doía muito, meu marido
e minha filha foram dormir, acenderam os candeeiros, perambulei pela pequena
casa, passei pela cama de meus filhos viajantes e senti vontade de juntar
as duas camas e deitar lá, recusei a vontade e fui até a
janela, o vento quente trouxe a voz melancólica de um sanfoneiro,
e as lágrimas brotaram duplicando as estrelas no céu. Fui
até o quarto de meus filhos, pequei duas blusas velhinhas deles,
caminhei até os pinheiros ainda sentindo o cheiro deles, dobrei
os mais que pude, tapei minha boca para que ninguém ouvisse meus
gritos e gritei seus nomes, gritei o mais que pude, quase sufocando meu
rosto chorei até que as lágrimas desceram tão quentes
que pareciam cortar minha face, retornei até a casa, meus passos
agora trôpegos, como uma anciã, mas era a dor que envelheceu
minha alma, a dor da saudade de meus filhos.
Fui para a cama, a noite longa, só trouxe recordações
de suas vidas, dos sorrisos dos choros, das voltas do pomar com frutas
nas cestas, dos banhos de chuva em tardes de verão, das brincadeiras
de meninos, dos primeiros passos, dos primeiros dias de vida quando aconchegavam
em meu colo, sugavam a fonte de vida tirada de meus seios, das dores que
senti para a porta do mundo, num parto de dor e alegria, das noites com
meu marido onde sonhei com uma casa cheia de filhos e netos para perpetuar
a família, para dar a alegria a minha vida. Nessas recordações,
amanheci, a dor doía ainda mais.
Os dias se arrastavam sem nada. Sem notícias, sem esperança,
as vezes ficava olhando o caminho e parecia que logo, a charrete traria
de volta meus meninos. Mas a esperança se perdia quando olhava para
as montanhas lá longe e as lágrimas inundavam meus olhos,
e quando não conseguia distinguir mais nada, pensava, assim é
o Brasil, nada sei como é esse país, da distância,
que nos separou.
E quando a saudade apertava meu peito, a esperança findava com
as tardes, ia até os pinheiros, tirava de dentro de meus seios as
blusas de meus filhos, e para que ninguém ouvisse, sentia o cheiro
deles, envolvia o mais que podia a minha boca e gritava seus nomes, um
grito de dor, um grito de mãe. Hoje, estou com oitenta anos, não
posso mais ir até os pinheirais minhas pernas não permitem,
não posso mais gritar, minha voz está fraca, ainda guardo
suas blusas rasgadas de tanto que enxugaram minhas lágrimas, mas,
na cadeira de balanço, quando estou sozinha... ainda posso chorar.
Os pinheiros ainda são os mesmos, ainda guardam meus gritos e minhas
lágrimas.
Lira Vargas