Denizart Melo era homem de ações extremadas.
Tão corajoso que sua intrepidez era facilmente confundida com loucura ou desespero. Isso afastava dele os homens, que o temiam ou odiavam. Além disso, nascer numa família de pessoas bonitas não foi prerrogativa para sua felicidade, mas para um eterno infortúnio. Seu porte alto, os olhos verdes como o rio que passava desejando-o diante de sua casa, os cabelos lisos e vastos - penteados e mantidos sempre molhados para cima - o diferenciavam da maioria dos homens de Carolina.
Rude com os homens, era brando com as mulheres. E essa doçura, sem o propósito de cortejá-las – talvez influência da mãe viúva –, era o pomo da discórdia com os outros homens, gerando antipatia e inimizade; criam-no desejar todas elas. Quem tinha moça virgem em casa, escondia-a de Denizart; os maridos vigiavam os passos de suas mulheres e os namorados e amantes enciumavam-se quando Denizart se aproximava de uma delas por qualquer motivo. Forçosamente era um solitário. Como praticamente impediam-no de criar laços afetivos com alguém, e os homens evitavam-no em qualquer diversão, só conseguia companhia e consolo com as putas da rua alta do rio ou do cais. Ali pagava e tinha atenção. Por longas horas entretinha-se na cama ou na rede, entre as coxas quentes e úmidas de Maria Pimenta, Joana Belzebu ou Helena dos Santos enquanto o rio continuava sua fuga lerda a jusante, vigiando-o pela janela. Mas sua satisfação restringia-se ao tempo em que ficava no cabaré. Quando voltava para casa, sua fisionomia fechava-se; os olhos insondáveis — amargurados pelo abandono — conservavam-se pelo caminho sempre tristes e perdidos nas pedras do chão ou seguindo as nuvens erráticas que lhe protegiam do sol tórrido e não percebiam que sua passagem na rua era um acontecimento, principalmente para as mulheres. Disfarçadamente, os olhares femininos fixavam-se em seu porte alto e elegante durante o curto percurso até em casa. Sonhavam elas em terem-se nos braços dele, sendo quem amassava a sua roupa de linho nas preliminares amorosas em vez das mulheres de vida fácil como diziam. Por verem roubado esse privilégio, sentiam muita inveja das putas da beira do rio. Quando ele, alheio a tudo, depois de entrar, fechava a porta da rua, os suspiros femininos interrompiam o êxtase.
As duas únicas mulheres com as quais Denizart tinha contato diário eram a mãe Anilda, viúva recatada, que após a morte do marido escoiceado por um touro, fechou-se num duro luto, restringindo seu mundo ao caminho de casa para a igreja e vice-versa, e a irmã Maria da Piedade. Mulher magra e doente, Piedade tinha a beleza estatuária e pia das santas católicas, e era companhia constante da mãe nos ofícios religiosos. Como único filho, com a tenra idade de quinze anos, Denizart, que já acompanhava o pai na lida das fazendas de gado, viu-se forçado com a sua morte a cuidar sozinho dos bens da família. Data dessa época o empedernecimento do seu coração nos negócios. Foi uma estratégia para impor-se num mundo no qual só homens feitos e resolutos tinham vez, e que terminou por afetá-lo irremediavelmente. Se essa máscara o oprimia ou o violentava por dentro jamais se soube, pois o árduo exercício desse procedimento o tornara homem de poucas palavras; também tinha por regra jamais reclamar de qualquer adversidade ou sorrir de um favorecimento. Não obstante a reserva, as suas feições eternamente carregadas delatavam o seu sofrimento. Não era religioso, e com monossílabos dizia a quem o interpelava – e eram poucos com essa coragem, como o padrinho Lucas Damasceno – que a mãe e a irmã rezavam a sua parte.
Denizart já fora alegre completamente, e desde a infância mantinha uma relação inexplicável com o rio. Uma relação de fascínio mútuo. Após assumir os negócios da família, somente diante do rio, ou quando mesmo de longe deitava os olhos sobre sua lâmina verde, acendia-se em seus olhos uma centelha de alegria. Em tais momentos por toda a sua vida, o rio parecia transformar-se num ser anímico, vivo, agitando mansamente suas águas numa dança sedutora. Ninguém jamais percebeu essa troca de carinhos, pois ela era efêmera.
O fato de ter nascido dentro de uma barca no rio Tocantins em viagem de seus pais a Belém parecia insuficiente para explicar a relação entre os dois. Mas Bento Ribeiro, o barqueiro que levava Anilda e Afonso Melo para o parto da mulher na capital do Pará sempre defendeu que eflúvios ligavam os dois e responsabilizava as circunstâncias do nascimento de Denizart por tudo. Insistia que não fora coincidência o tempo, fechado e chuvoso já havia dois dias durante a viagem num dezembro de muitas águas, abrir-se de repente quando Anilda começou as contrações. Essa história, contada com insistência pelo velho piloto, virou folclore em Carolina. Ele repetia a quem quisesse ouvi-lo, mascando um naco de fumo ordinário – sentado à sombra de uma figueira - e cuspindo um sumo escuro entre uma frase e outra: “Aquele menino é filho do rio; vossa mercê precisava ver como as nuvens fugiram para longe e o sol apareceu brilhando no céu e nas águas. Botos e peixes de toda espécie seguiram a balsa saltando a sua volta em efusiva reverência desde que o menino nascera até o desembarque em Imperatriz para a volta a Carolina; eu segui adiante, até Belém, com a carga de charque, enfrentando o mau-tempo”.
Na infância, Denizart espantava os pais com abundantes depoimentos a cerca do fascínio que o rio exercia sobre ele. Eram histórias inquietantes, augurando sua sorte futura. Sem dar muito crédito, Anilda e Afonso procuravam incutir no filho que ele sonhara. Mas esses fatos aconteciam a qualquer hora, bastando ter visitado o rio. Num deles, relatou: “Mãe, eu parei sobre os seixos a mais ou menos um metro da margem; de repente as águas do rio vieram — inexplicavelmente — ao meu encontro. Tocaram meus pés, elevando-se lentamente até meus joelhos. Paralisado, eu observava sua evolução. Na altura de minhas coxas, a água deixou de subir. Peixinhos pequenos me rodearam e me beliscavam, fazendo carícias. Eu os pegava na mão e eles não temiam o meu toque. Lentamente a água voltou ao nível normal e os peixinhos sumiram. Tive vontade de mergulhar no rio a procura deles”. A mãe, assombrada, o recriminava: “Filho, você sonhou! Essas coisas não acontecem assim de repente. Imagine só, o rio subir em pleno meio do ano, sem chuva e com esse sol escaldante”. Denizart insistia, e apurada, a mãe era obrigada a lhe dar um quitute para ele esquecer o fato.
Quando adulto, temendo o escárnio geral não mais contava a ninguém sua relação fenomenal com o rio. Mas a ação taumatúrgica continuou acontecendo até a sua morte. Talvez por esconder esses sortilégios, jamais alguém cogitou se a morte de Denizart foi ou não um chamamento do rio.
Com trinta anos de idade, Denizart era homem respeitado e bem sucedido na criação de bovinos. A família tinha quatro fazendas, duas delas adquiridas sob sua gestão, e ele fazia transações numa vasta região. Continuava solteiro, mas era socorrido pelas putas do cais com seus favores sexuais e seus carinhos, ouvindo o murmúrio do rio sob a janela enquanto amava. A mãe não intervinha no comportamento do filho, preferindo o silêncio apesar do mal-estar moral causado por seus pruridos religiosos quando o assunto era o comportamento dele, e se mantinha assim por conhecer a segregação que a sociedade hipócrita o impunha. E quando alguém a procurava em sua casa, no trajeto ou dentro da igreja, e falava sobre o comportamento devasso de Denizart com as mulheres do rio, ela interrompia o interlocutor com seu fiapo de voz, cuja tremura denunciava o cansaço da idade e uma constante angústia que as decepções da vida lhe deixaram como seqüela: “Deixe meu filho em paz; ele já é muito perseguido”.
O infortúnio de Denizart aconteceu após a venda de uma partilha de gado a João Crisóstomo, corretor que morava do outro lado do rio. Ele já havia repassado o gado a outro fazendeiro e não honrara o pagamento no prazo estipulado. Por várias vezes Denizart o procurara, ouvindo sempre desculpas que não convenciam. Ficava, ao cabo dessas conversas, a certeza de que estava sendo enrolado. A boataria em torno do assunto não conjeturava outro desfecho senão uma tragédia. Nas praças de Carolina, sob as mangueiras, em qualquer hora, os homens só conversavam sobre isso e pareciam morbidamente desejar um final aziago. Agourar a sorte de outrem era o combustível que fazia crescer o novelo das fofocas.
Extremado como era, Denizart abalou a pachorra da cidade com o recado desaforado que mandou a João Crisóstomo por um capanga: “Se em dois dias a dívida não for quitada, vou buscar sua cabeça”. Sem saída, restou a Crisóstomo blefar em resposta enviada pelo portador do recado: “Não venha que você morre”. Foram dois dias em que toda a cidade contou os segundos. Parecia haver vigília nas praças e nas ruas para a contagem do tempo. Indiferente à movimentação, Denizart não alterou sua rotina, aliás, fez uma única mudança: não viajou como fazia constantemente. Em vez disso, preferiu aumentar a freqüência de visitas às meninas do cais. Quando se dirigia para lá, seu porte elegante continuava despertando a atenção, mas as centenas de olhares que o acompanhavam suscitavam agora outros comentários e sentimentos: “Está se despedindo, coitado!” As mulheres iam às lágrimas e os homens mal disfarçavam uma ponta de contentamento.
Na madrugada do dia em que ia fazer a cobrança, mais uma vez Denizart teve um sonho ao qual deu pouca importância. E não lhe deu crédito porque era igual a tantos que já tivera ao longo de sua vida. O rio, como em todos os outros sonhos, estava presente. Denizart estava mais uma vez em sua margem, os pés descalços sentiam a pressão dos seixos e a umidade da areia. O rio elevava suas águas para envolver o seu corpo. O nível das águas subia rapidamente e Denizart tinha que recuar apressado. O rio deixava seu leito e avançava sobre a cidade em seu encalço. Inexplicavelmente, ele era o único morador da cidade. Quando ele corria em direção às casas, as ruas alargavam-se com o propósito de impedir que buscasse refúgio. Denizart cansava-se, como nas outras ocasiões, para subir a ladeira íngreme até a praça da Prefeitura. Lá, completamente exausto, subia em uma mangueira para fugir à inundação, mas as águas - mais revoltas a cada sonho - derrubavam-no da árvore, afogando-o.
Quando levantou da cama, encontrou na copa a mãe e a irmã fazendo a primeira refeição do dia. Caladas, olharam-no e perceberam o seu semblante com um vinco no sobrolho. Decifraram, sem precisar de palavras, que havia novamente sonhado com o rio. A mãe comprimiu os lábios, que compuseram uma linha fina e descorada, sentiu uma forte dor na nuca: era a enxaqueca, mas resistiu a perguntar o óbvio. A irmã não teve reservas: “Novamente o rio?” Denizart passou por ela em direção ao espelho para barbear-se, e disse lacônico: “Sim”. Após o asseio matinal, massageou o rosto e aplicou loção. Olhou as duas mulheres comendo broas de milho com café e despropositadamente pensou que aumentava o patrimônio familiar para nada.
Saiu seguido pelos olhares das duas mulheres, todavia sem que o acompanhassem até a porta. Antes de encostar a porta e ganhar a rua, conferiu na cintura a pistola que levava consigo. Era apenas um sestro que tinha, pois ainda no quarto havia feito uma vistoria completa na arma inclusive no pente com as balas. Havia tempo que não a usava e sorriu ao pensar na fama de homem violento que o seguia onde colocasse os pés. Não era habitual essa concessão, e imediatamente fechou o semblante. Desceu sozinho para o cais a fim de pegar a balsa e atravessar o rio. A irmã abriu a janela e gritou ainda para ele: “Leva o Januário, não vá sozinho”. Ele apenas gesticulou levemente com a mão num sinal que ela entendeu como ‘prefiro ir só’. Piedade deu de ombros e fechou a janela. O sol estival preparava-se para mais um dia de castigo à cidade, mas era brando nas primeiras horas do dia. Denizart cruzou com um vendedor de peixes que vinha do rio e este lhe indicou que a balsa estava atracada no cais. Os pássaros assanhavam-se nas figueiras e mangueiras da rua, e embora a hora ainda fosse fresca, ele preferiu a sombra das árvores no caminho até o rio.
As portas e janelas das casas na rua do rio abriam-se depois que ele passava. O povo fervia de curiosidade mas tinha pudor de olhá-lo de frente, preferindo disfarçar. Denizart ia cobrar uma dívida como tantas que já recebera forçando a barra, e por achar a situação absolutamente comum não havia nele a menor tensão ou expectativa. A ocasião, tantas vezes acontecida, era como outra qualquer. Mas o povo cheirava tragédia, e só ele não se angustiava. Os homens disfarçavam um sorriso enquanto as mulheres persignavam-se.
A barca estava quase deixando o porto quando Denizart chegou ao cais. Apressando o passo entre vendedores de peixes e frutas, alcançou os últimos passageiros, acomodando-se sob o toldo. As pessoas abriram-lhe passagem sob domínio de algum temor.
Só depois de acomodado, Denizart colocou os olhos sobre o rio. O mês era setembro, ainda não havia chovido, e o rio - maltratado pela demorada vazante – mostrava bancos de areia como cicatrizes na superfície que era densa na estação das águas. “Você está magro, Tocantins; mas não vai demorar a chover”, pensou.
A barca avançava para o outro lado, coleando entre os bancos de areia para evitar o encalhamento. A habilidade do piloto executava o serviço com perfeição. No meio do rio aconteceu o inusitado: uma onda - surgida do nada - colheu-a lateralmente com fortes balanços. Era um fenômeno inexplicável, porque exaurido o rio não tinha forças para esse levante. Denizart, no momento do incidente, estava reclinado despreocupadamente sobre a baixa amurada, sentindo as carícias dos peixinhos na mão mergulhada na água. O forte solavanco jogou-o para diante, ele não conseguiu agarrar-se à amurada e caiu no rio. A onda empurrou ainda mais para longe a balsa e Denizart foi ligeiro sugado por um redemoinho. Não sofreu a morte no regaço do amante; nem a morte reservou-lhe a angustiante surpresa de acontecer diante de um desconhecido.
Três dias depois encontraram seu corpo enleado nos sarãs à beira do rio, dois quilômetros abaixo. O pescador que o achou nas primeiras horas da manhã enquanto recolhia sua rede de pesca, assustou-se com o corpo inchado, mas reconheceu Denizart pelo terno de tecido caro e o relógio de algibeira preso por grossa corrente de ouro. Voltou à cidade remando com forças que não conhecia ter. A notícia correu veloz toda Carolina e em pouco tempo no cais não cabia mais ninguém. Disse em seu depoimento ao delegado - na presença de uma assistência que se comprimia para ouvi-lo, enquanto doutor Zeca, numa sala fechada com seu assistente necropsiava o corpo - que, embora morto, Denizart conservava o rosto maravilhado como se seu passamento houvesse acontecido em pleno orgasmo.
Não houve velório e sequer a resumida família pôde chorar o morto, pois os gases da putrefação empestaram primeiro a delegacia, convertida em sala de autópsia, e depois a grande sala do sobrado na rua alta do rio, onde Denizart morava e fora levado para as despedidas da mãe e da irmã. As duas, abaladas pelas fortes emoções de três dias, estavam acamadas. Levantaram pelos braços da vizinhança para ir até o caixão pesado de mogno que as esperava na sala. A comoção das duas mulheres transiu de soluços toda a assistência. As batidas surdas dos punhos de dona Anilda sobre o tampo do caixão, com força sobrenatural que seus descarnados braços não mais permitiam, repercutiram com igual força em todos os corações. Nessa hora, homens e mulheres, também comovidos, abaixaram as cabeças; e os lenços que evitavam sentir o cheiro pestilento do cadáver migraram dos narizes para os olhos.
Foi sepultado no cemitério à beira do rio em grande romaria. As putas do cais seguiram-lhe ao lado o tempo todo, chorando a perda do amante e nem um pouco preocupadas com o escândalo da situação. Usaram vestidos com grandes estampas florais e comentavam sussurrando entre si essa opção: “Ele só era alegria conosco”. As outras mulheres choraram pra dentro as lágrimas reprimidas que não umedeceram os lenços que levavam ao nariz. Os homens cumpriram seu papel de desfazerem-se do morto e voltaram para casa aliviados.
A história de Denizart nunca foi esquecida na cidade, sobretudo por causa do insólito acontecimento no dia da visita de sétimo dia.
A casa de Denizart estava repleta de buquês, coroas e todo tipo de arranjos florais que seriam colocados sobre o túmulo na hora mais fresca da tarde. Haviam sido trazidos pelos parentes vindos de outras cidades ou fazendas e pelas mulheres de Carolina, que lhe rendiam uma última homenagem. A grande movimentação de parentes e curiosos obrigara a abertura de portas e janelas para que o trânsito do ar em todos os cômodos refrescasse a moradia e evitasse que as flores murchassem. Duas horas antes das dezessete, uma algazarra na rua, subindo do cais, quebrou a tranqüilidade da beira rio. Piedade correu à janela para conferir o tumulto e, estarrecida com o que viu, desmaiou, caindo para trás no soalho de tábuas de ipê. Ladeira acima os moradores das casas próximas, os vendedores de peixes e frutas, as putas do cais, a população que ia ao cais fazer suas compras e as lavadeiras corriam da grande onda que elevara o nível das águas do rio e avançava na direção do porto e do cemitério que ficava ao lado sobre um barranco alto. A força da onda varreu o cais de cimento, lançando longe as bugigangas dos vendedores e as malas de roupa das lavadeiras. Gemia forte como o lamento de uma mãe que perdera o filho ou que corre em seu socorro quando o sente em grande perigo. Ela invadiu o cemitério derrubando mausoléus e túmulos, desgalhando árvores e quebrando as cruzes das covas rasas dos mortos pobres. Num átimo destruiu tudo. Refluiu com a mesma pressa com que chegara e só ficou flagrante a sua ação pelo rastro de destruição deixado.
Quando a calma foi restabelecida, a cidade correu assustada ao cemitério. A sepultura de Denizart estava aberta e revirada, sem o corpo dentro. Desse dia em diante todos em Carolina passaram a crer na história do velho Bento Ribeiro: “Ele era filho do rio”.